A sátira em “O alienista” (1982), de Machado de Assis (1839-1908), é trabalhada e explorada constantemente sobre o ponto de vista que é rapidamente estabelecido: as ambições de Simão Bacamarte (protagonista), a ciência, e as pessoas e munícipes que o cercam.
Como logo tomamos conhecimento, Simão passa a se dedicar ao exame das patologias cerebrais, ramo pouquíssimo explorado e que, em sua assimilação, pode ser útil para as ciências lusitana e brasileira. Tal interesse ocorre após perceber que não terá filhos com a esposa que escolhera. Embora o sentimento do protagonista não seja esmiuçado face a esse acontecimento, a narrativa o menciona trazendo uma dose de sua sátira, ao mesmo tempo em que introduz seus primeiros passos rumo a essa área (do recanto psíquico):
“Mas a ciência tem o inefável dom de curar todas as mágoas; o nosso médico mergulhou inteiramente no estudo e na prática da medicina. Foi então que um dos recantos desta lhe chamou especialmente a atenção, — o recanto psíquico, o exame de patologia cerebral. Não havia na colônia, e ainda no reino, uma só autoridade em semelhante matéria, mal explorada, ou quase inexplorada. Simão Bacamarte compreendeu que a ciência lusitana, e particularmente a brasileira, podia cobrir-se de “louros imarcescíveis”, — expressão usada por ele mesmo, mas em um arroubo de intimidade doméstica; exteriormente era modesto, segundo convém aos sabedores.” (ASSIS, 2014)
Na primeira parte do trecho destacado, a constatação de que “a ciência tem o inefável dom de curar todas as mágoas” aparece em forma de aforismo, mas é precisamente nessa introdução que vislumbramos uma parte da ironia machadiana: nem todas as mágoas são curadas pela ciência, e “dom” não é comumente associável à ciência. E, ao final do trecho também encontramos uma importante pista de outra ironia e, ainda, da escolha do ponto de vista de um narrador onisciente livre em terceira pessoa (ou seja, que não se aprofunda em um único personagem) para a composição da narrativa:
“Simão Bacamarte compreendeu que a ciência lusitana, e particularmente a brasileira, podia cobrir-se de “louros imarcescíveis”, — expressão usada por ele mesmo, mas em um arroubo de intimidade doméstica; exteriormente era modesto, segundo convém aos sabedores.” (ASSIS, 2014)
Simão, que tanto almeja dar às ciências lusitana e brasileira “louros imarcescíveis”, tem arroubos de intimidade doméstica, ao passo que, exterior e externamente, porta-se de forma modesta, conforme convém “aos sabedores”; a ironia, aqui, é sutil, pois estabelece uma conduta que, embora seja avaliada por Simão enquanto médico alienista, é usada por ele próprio com o intuito de controlar e reconhecer o controle (como o caso de Porfírio), ao mesmo tempo em que exerce tal (auto)controle tendo sempre a ciência como fim e justificativa; a ciência passa a ser usada como ferramenta de legitimação para toda a sua forma de se portar, agir, ordenar e controlar. A ciência lhe confere poder.
Com efeito, seu comportamento é constantemente mencionado para enfatizar tais elementos, mesmo em uma situação que tipicamente suscitaria algum desequilíbrio, como, por exemplo, quando a esposa chama sua atenção para os gritos:
“— Você não ouve estes gritos? perguntou a digna esposa em lágrimas.
O alienista atendeu então; os gritos aproximavam-se, terríveis, ameaçadores; ele compreendeu tudo. Levantou-se da cadeira de espaldar em que estava sentado, fechou o livro, e, a passo firme e tranqüilo, foi depositá-lo na estante. Como a introdução do volume desconsertasse um pouco a linha dos dois tomos contíguos, Simão Bacamarte cuidou de corrigir esse defeito mínimo, e, aliás, interessante. Depois disse à mulher que se recolhesse, que não fizesse nada.” (ASSIS, 2014)
A despeito dos gritos cada vez mais próximos, “terríveis, ameaçadores”, Simão prossegue sereno, sendo afetado por esses meramente ao verificar a falta de alinhamento entre os livros que se encontram na estante ao depositar o que lia entre eles, realinhando-os na sequência. E tendo a última palavra para a mulher, dizendo-lhe que “se recolhesse, que não fizesse nada” (ASSIS, 2014).
Tal comportamento se estende e se une à justificativa da ciência mencionada anteriormente em outro trecho que serve como exemplo de sua conduta:
“O alienista sorriu, mas o sorriso desse grande homem não era coisa visível aos olhos da multidão; era uma contração leve de dois ou três músculos, nada mais.” (ASSIS, 2014)
Aqui, seu sorriso não se manifesta plenamente, uma vez que se encontra em público, um cenário tão diferente daquele permitido para seu arroubo doméstico; e a ciência, como justificativa, aparece a seguir:
“Sorriu e respondeu:
— Meus senhores, a ciência é coisa séria, e merece ser tratada com seriedade. Não dou razão dos meus atos de alienista a ninguém, salvo aos mestres e a Deus. Se quereis emendar a administração da Casa Verde, estou pronto a ouvir-vos; mas se exigis que me negue a mim mesmo, não ganhareis nada. Poderia convidar alguns de vós, em comissão dos outros, a vir ver comigo os loucos reclusos; mas não o faço, porque seria dar-vos razão do meu sistema, o que não farei a leigos nem a rebeldes.” (ASSIS, 2014)
A ciência que aqui é exibida como justificativa, não é tratada exatamente como ciência em sua expressão mais forte: Simão confessa que dá somente aos mestres e a Deus as razões dos seus atos (novamente a sátira da ciência e a religião coexistindo em uma área que deveria ser somente das ciências); que não permite que outros vejam aqueles que ele considerara louco e colocara na Casa Verde (a casa de orates que já abriga muitos em virtude das deliberações de Simão sobre quem é louco, e que leva esse nome pelas janelas, e não pela pintura da própria casa – outra ironia) para não dar razão de seu sistema; e que não o faz por se tratarem de leigos e rebeldes, posicionando-se, assim, de forma superior em todas essas instâncias. É esse comportamento, tão autocontrolado e tão amparado a favor do controle que tem implicações essenciais no restante da obra, pois Simão controla a si mesmo e aos demais, sempre apoiando-se na ciência (que, a essa altura, é evidente tratar-se de um cientificismo e que faz parte da sátira).
Tão oposto a Simão, temos e vemos a sua esposa no decorrer dos dois primeiros meses em que o marido se dedica à prática de alienista e de administrador da casa de orates:
“Ilustre dama, no fim de dois meses, achou-se a mais desgraçada das mulheres; caiu em profunda melancolia, ficou amarela, magra, comia pouco e suspirava a cada canto. Não ousava fazer-lhe nenhuma queixa ou reproche, porque respeitava nele o seu marido e senhor, mas padecia calada, e definhava a olhos vistos. Um dia, ao jantar, como lhe perguntasse o marido o que é que tinha, respondeu tristemente que nada; depois atreveu-se um pouco, e foi ao ponto de dizer que se considerava tão viúva como dantes. E acrescentou:
— Quem diria nunca que meia dúzia de lunáticos…” (ASSIS, 2014)
A somatização das consequências das atitudes de Simão são patentes na mulher, que o respeita, calada, por tê-lo como marido e senhor, embora pudesse considerar a si mesma tão viúva quanto era quando antes de conhecê-lo. E termina, por fim, interrompendo as próprias palavras, não se atrevendo a dizer mais do que “Quem diria nunca que meia dúzia de lunáticos…”
O “atrevimento” de falar o que pensava (ainda que permaneça desconhecida a inteira fala que almejava externar) denota uma espécie de revolta que vai escalando aos poucos, também, entre aqueles que estão ao redor de Simão e de seus atos como alienista, consciência que, posteriormente, põe em dúvida quem é o verdadeiro alienado, quando tantas pessoas que poderiam ser consideradas normais encontram-se reclusas e são tidas por dementes por deliberação de Simão.
O poder que Simão exerce como alienista é evidente, e poder semelhante é o que Porfírio, um dos munícipes, almeja. Não é surpresa, portanto, que Porfírio seja o responsável por coordenar a revolução que tem como intuito acabar com a Casa Verde e que, inicialmente, logra êxito, conforme vê-se no trecho:
“A revolução triunfante não perdeu um só minuto; recolheu os feridos às casas próximas e guiou para a câmara. Povo e tropa fraternizavam, davam vivas a el-rei, ao vice-rei, a Itaguaí, ao “ilustre Porfírio”. Este ia na frente, empunhando tão destramente a espada, como se ela fosse apenas uma navalha um pouco mais comprida. A vitória cingia-lhe a fronte de um nimbo misterioso. A dignidade de governo começava a enrijar-lhe os quadris.” (ASSIS, 2014)
É na descrição da vitória e no modo de como a “dignidade de governo” lhe enrijecem os quadris que vemos como o poder atrai e modifica, também, Porfírio. Contudo, o triunfo da revolta dura pouco:
“Os vereadores, às janelas, vendo a multidão e a tropa, cuidaram que a tropa capturara a multidão, e sem mais exame, entraram e votaram uma petição ao vice-rei para que mandasse dar um mês de soldo aos dragões, ‘cujo denodo salvou Itaguaí do abismo a que o tinha lançado uma cáfila de rebeldes’. Esta frase foi proposta por Sebastião Freitas, o vereador dissidente, cuja defesa dos Canjicas tanto escandalizara os colegas. Mas bem depressa a ilusão se desfez. Os vivas ao barbeiro, os morras aos vereadores e ao alienista vieram dar-lhes notícia da triste realidade. O presidente não desanimou: – Qualquer que seja a nossa sorte, disse ele, lembremo-nos que estamos ao serviço de Sua Majestade e do povo. – Sebastião Freitas insinuou que melhor se poderia servir à coroa e à vila saindo pelos fundos e indo conferenciar com o juiz de fora, mas toda a câmara rejeitou esse alvitre.” (ASSIS, 2014)
Aqui, os munícipes fazem o que mais convém, e nisso manifesta-se também a sátira: as instâncias de poder que se revelam em caricaturas cuja irracionalidade demonstrada não se associam apenas com a loucura como objeto de estudos de Simão, mas com a falência de vários princípios humanos materializados nas atitudes dos personagens que fazem o que mais lhes convém de acordo com as aspirações que possuem para alcançarem e usufruírem de algum poder e prestígio.
Referência bibliográfica
ASSIS, Machado de. O alienista. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2014.