1. Introdução
Embora “Mayombe”, romance de Pepetela que narra as histórias de alguns guerrilheiros reunidos na floresta homônima durante a Guerra de Libertação de Angola, seja considerado uma obra polifônica em virtude de seus inúmeros “narradores” que surgem e se manifestam no decorrer de uma narrativa predominantemente feita em terceira pessoa, muitos desses elementos podem ser questionados para pôr em xeque a profundidade desses múltiplos narradores e, consequentemente, os seus valores como agentes narrativos autônomos e independentes capazes de influenciar ou alterar os próprios rumos da história que configurariam a obra como polifônica.
2. A multiplicidade dos narradores em “Mayombe”
Pepetela, pseudônimo pelo qual o escritor angolano Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos é conhecido, iniciou a escrita de “Mayombe” como um comunicado de guerra, uma vez que ele próprio participara desse combate ao lado dos guerrilheiros do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) contra Portugal[1]. Com efeito, seu romance possui um estilo documental. Entretanto, como o próprio autor dissera, considerando que a linguagem “era demasiado fria e escassa para tantas emoções e factos” (TUTIKIAN, 2009), decidiu continuá-la fazendo surgir assim, então, a consagrada obra que narra um fragmento dessa guerra colonial.
O romance, narrado majoritariamente em terceira pessoa, traz consigo inúmeros aspectos que corroboram sua onisciência e onipresença como tal. De fato, estamos presos, na maior parte da narrativa, à essa forma; sabemos, por meio do narrador, o que os guerrilheiros sentem e pensam. Por outro lado, é justamente por meio dos trechos narrados em primeira pessoa — e que conferem a obra a sua característica polifônica — que compreendemos (ou sentimos compreender), com maior profundidade, as motivações dos personagens.
Logo no Capítulo I, o narrador em terceira pessoa nos apresenta à Teoria, o professor, contando-nos que ele se machucara em um rio. Sabemos, por meio desse narrador, as expressões que o professor fez ao lhe ser sugerido que voltasse, e que escondia seu sofrimento e sorria sem ânimo.
O rio Lombe brilhava na vegetação densa. Vinte vezes o tinham atravessado. Teoria, o professor, tinha escorregado numa pedra e esfolara profundamente o joelho. O Comandante dissera a Teoria para voltar à Base, acompanhado de um guerrilheiro. O professor, fazendo uma careta, respondera:
– Somos dezasseis. Ficaremos catorze.
Matemática simples que resolvera a questão: era difícil conseguir-se um efetivo suficiente. De mau grado, o Comandante deu ordem de avançar. Vinha por vezes juntar-se a Teoria, que caminhava em penúltima posição, para saber como se sentia. O professor escondia o sofrimento. E sorria sem ânimo. (PEPETELA, 2013)
A seguir, temos a primeira manifestação de Teoria como narrador, que nos permite conhecê-lo melhor, dando-nos conhecimento de sua origem e de parte dos seus pensamentos.
EU, O NARRADOR, SOU TEORIA.
Nasci na Gabela, na terra do café. Da terra recebi a cor escura de café, vinda da mãe, misturada ao branco defunto do meu pai, comerciante português. Trago em mim o inconciliável e é este o meu motor. Num Universo de sim ou não, branco ou negro, eu represento o talvez. Talvez é não para quem quer ouvir sim e significa sim para quem espera ouvir não. A culpa será minha se os homens exigem a pureza e recusam as combinações? Sou eu que devo tornar-me em sim ou em não? Ou são os homens que devem aceitar o talvez? Face a este problema capital, as pessoas dividem-se aos meus olhos em dois grupos: os maniqueístas e os outros. É bom esclarecer que raros são os outros, o Mundo é geralmente maniqueísta. (PEPETELA, 2013)
O narrador, em terceira pessoa, assume novamente a história e nos comunica, entre outras informações, também informações privilegiadas (como é de se esperar de um narrador onisciente) sobre Teoria: dormira pouco, pois a perna molhada lhe doera de forma atroz.
Temos, portanto, nas primeiras páginas da obra, duas características fundamentais, não apenas para a compreensão do desenvolvimento da história, como também para o conhecimento dos personagens, divididos em dois tipos de narradores: o primeiro, onisciente e onipresente, em terceira pessoa; e o segundo, limitado a si mesmo, mas (aparentemente) rico em autoconhecimento.
Todavia, basta nos depararmos com um novo (suposto) narrador para nos vermos diante de estruturas e formas semelhantes: ambos se manifestam após títulos idênticos e que, no caso de Teoria e Milagre (os dois primeiros narradores em primeira pessoa a surgirem no desenvolvimento da história), se apresentam da mesma maneira: “Nasci em Gabela, na terra do café” e “Nasci em Quixabe, região kimbundo (…)”, respectivamente. Ademais, detendo-nos somente às narrações feitas por tais narradores, percebemos, não apenas a repetição da mesma estrutura, mas também a recorrente necessidade inicial de se mencionar o local de nascimento (e os que não o fazem dentro de suas próprias narrações também têm seus locais de nascimento narrados pelo narrador em terceira pessoa).
Sobre esse aspecto, vale discorrer sobre três pontos: 1) as informações básicas repassadas pelos narradores em primeira pessoa; 2) a diversidade da origem dos narradores, seus conflitos e o tribalismo e; 3) a validade, veracidade e independência do narrador para a caracterização da polifonia.
Primeiramente, sempre que um narrador em primeira pessoa se manifesta na história, sua presença surge demarcada não apenas por um título, conforme mencionado anteriormente, como também por sinal tipográfico (no caso, itálico). A despeito de sua variedade (conteúdo), algumas das informações pontuais, as quais podemos chamar, em alguns casos, de informações básicas (como o local de nascimento), são, quase invariavelmente, colhidas durante o levantamento de informações para compor comunicados de guerra, forma pela qual o romance começou a ser escrito pelo autor. Além disso, vale destacar que até mesmo as informações que, na ocasião, não possuíssem caráter de valor para a composição de tais comunicados, ainda poderiam ser informações facilmente retidas na memória de qualquer relator e que poderiam ser utilizadas para qualquer fim estético-narrativo. Vale, sem dúvida alguma, a suposição, ainda que longe de qualquer certeza.
Em atenção ao segundo ponto, dada a variedade de sujeitos, informações e suas origens, seria natural que cada narrador possuísse, pelo menos, sua própria voz, isto é, seu estilo linguístico dentro da narração, mas tal fato não pode ser evidenciado (pode, por outro lado, ser evidenciado o contrário, como será demonstrado no terceiro ponto). Apesar disso, tal variedade e, principalmente o conteúdo expresso por tais narradores, ainda é importante tendo em vista a maneira pela qual guerrilheiros de tribos diferentes se encontram unidos contra uma causa maior, apesar de suas dissonâncias internas, resultantes das noções do tribalismo que fizeram com que os diversos grupos étnicos angolanos lutassem de forma desarticulada contra os portugueses[2].
É por meio desses “narradores”, mas não apenas somente por meio deles, que inicialmente entrevemos essa desarmonia e, posteriormente, temos a certeza dessa variedade antes de, por fim, vislumbrarmos uma nova dimensão no relacionamento entre os integrantes desses diversos grupos quando o tribalismo é superado. Sobre isso, há dois trechos que ilustram essa disparidade: um extraído do diálogo entre Teoria e Ekuikui, que demonstra o despropósito desses conflitos internos, e o outro, da narração em primeira pessoa atribuída à Lutamos, que evidencia a superação, respectivamente:
“— Camarada Teoria, os dois queriam a mesma coisa. Quando há problema tribal, não vale a pena pensar quem é que tem a culpa. Se duma vez foi um que provocou, é porque antes o outro tinha provocado. Quem nasceu primeiro, a galinha ou o ovo? É assim com o tribalismo.” (PEPETELA, 2013)
“Estivemos sempre juntos, ele sabe que não trairei. Mas quantos são os que pensam como ele? Vai embora, foi dito que se vai embora para o Leste. Quem me defenderá dos outros, quem terá a coragem de se opor ao tribalismo?
Terei de ser eu a impor-me, sendo mais corajoso que ninguém. E Nzambi sabe como tenho medo! Mas que será feito do meu povo se o único cabinda se portar mal?
Às vezes penso que os outros têm razão, que era preciso liquidar os cabindas. É nos momentos de raiva. Mas o meu irmão, bem mobilizado, não seria capaz de lutar? Seria, sim, é só preciso que a luta avance.
Depois de amanhã, no combate, serei como o Sem Medo. O meu povo o exige.” (PEPETELA, 2013)
O terceiro e último ponto trata sobre a profundidade dessas distintas vozes para validá-las como narradores capazes de conferirem ao romance sua característica de polifonia, uma vez que, de acordo com Bakhtin (2015), apenas a presença delas não é suficiente para assegurar tal categorização.
Como mencionado em várias ocasiões anteriores, as narrações em primeira pessoa são demarcadas por sinais tipográficos. Além disso, a forma como se expressam carece de estilo próprio, recursos que poderiam sinalizar e evidenciar a presença de qualquer narrador ainda que seu nome fosse omitido, uma vez que suas características se manifestariam no texto, tornando-o genuinamente seu. Em “Mayombe”, entretanto, constatamos o oposto: não há construções de enunciados únicos, “patenteáveis” e nem mesmo neologismos; a colocação dos pronomes oblíquos e reflexivos aparece sempre na forma correta do ponto de vista gramatical, independentemente do grau de escolaridade (Lutamos foi alfabetizado durante a guerrilha e, Novo Mundo, em faculdade na Europa); as narrações são limitadas, e não se estendem de acordo com o fluxo do suposto narrador que, diferentemente da linearidade vista na narrativa em terceira pessoa, aparece de forma praticamente “editada”.
Para Minuzzi (2017), temos, em “Mayombe”, portanto, o dialogismo, pontos de vista diferentes que não o caracterizam como polifônico.
Além disso, ao final da obra, tomamos conhecimento de que o Comissário Político, amigo de Sem Medo, sempre fora o narrador em terceira pessoa. De fato, diferentemente das outras ocasiões em que os supostos narradores se manifestaram, a revelação vem de forma patente: “O NARRADOR SOU EU, O COMISSÁRIO POLÍTICO.” (PEPETELA, 2013) Assim, como se não bastasse todas os sinais anteriores, a confissão é máxima, e impacta toda a construção do romance.
3. Conclusão
De início, a presença de múltiplos narradores em “Mayombe” parece não apenas verdadeira, como também palpável: temos apresentações, origens, motivações, opiniões e casos diferentes que surgem vinculados a esses “contadores” de suas próprias histórias. Entretanto, basta-nos atenção e análise detalhadas para notarmos suas limitações enquanto narradores para, por fim, reconhecermos a importância da confissão final, no epílogo, do verdadeiro narrador, o qual se ocultara, em todo o romance, nos supostos narradores-personagens. Resta-nos, assim, o dialogismo, ou seja, a presença de pontos de vista diferentes expostos por meio dos relatos que o verdadeiro narrador, o Comissário Político, compartilha durante a narração cronológica, e não a polifonia.
Referências
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. 5ª edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
MINUZZI, Luara Pinto. Mayombe – Um romance polifônico?. In: ANAIS DOS EVENTOS: XXX SEMINÁRIO BRASILEIRO DE CRÍTICA LITERÁRIA, O XXIX SEMINÁRIO DE CRÍTICA DO RIO GRANDE DO SUL E O III ENCONTRO NACIONAL DE ESCRITA CRIATIVA – A ESCRITA E CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL: LIMIARES E PERSPECTIVAS. Porto Alegre: Editora Universitária da PUCRS, 2017.
PEPETELA. Mayombe. São Paulo: LeYa, 2013.
TUTIKIAN, Jane. Entrevista com Pepetela por Jane Tutikian. Organon, Porto Alegre, nº 47, julho-dezembro, 2009, p. 209-211. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/organon/article/view/29518/18203. Acesso em: 10 out 2021.
[1] Cf. PRADO, Luiz. Em “Mayombe”, selva faz surgir o “homem novo” angolano. Jornal da USP, 2018. Disponível em: https://jornal.usp.br/?p=127208. Acesso em: 11 out 2018.
[2] Cf. KAWAHALA, Edelu; DE VIVAR Y SOLER, Rodrigo Diaz. Mayombe: polifonia diaspórica, mestiçagens e hibridismo na guerra de libertação em Angola. Cadernos CESPUC, Belo Horizonte, n. 19, p. 51-60, 2010.