Vidas passadas

Havia algum tempo que Giovana desejava resolver as ininterruptas brigas que tinha com Luiz, seu noivo. Restava, na verdade, apenas um único impasse. Cada vez maior e mais intolerável, um término parecia irremediável, algo que Giovana não estava disposta a aceitar.

O relacionamento de ambos havia começado com pouquíssimas chances de dar certo. Nenhum dos dois acreditavam em um futuro juntos, mas o tempo voou entre um obstáculo e outro — a diferença de idade, a incompatibilidade das famílias, a religião e o modo de viver — e a afinidade e a cumplicidade, que nunca diminuíram, os levaram ao noivado. Para qualquer outra pessoa, era natural que permanecessem juntos — somente eles se negavam a ver ou a aceitar. Entretanto, o único obstáculo que até então não havia sido superado era o filho de Giovana. Não para ela, claro, mas sim para Luiz. Para ela, o filho era sinônimo de um amor incondicional; para ele, um estorvo incompreensível.

Luiz não gostava de crianças. Não qualquer criança, mas sim aquelas dos tempos modernos cujos pais, regras, educação e bom senso eram permanentemente ausentes; aquelas que nasciam por mero capricho de se perpetuar a espécie, sem terem sido planejadas ou amadas muito antes de concebidas ou vistas no primeiro ultrassom; aquelas que, consequentemente, cresciam sem freios, gritavam e choravam a níveis estridentes em público e eram mimadas pelos restos de suas infâncias com presentes caros, liberdade excessiva e nenhuma noção de respeito ou limite. Por outro lado, Luiz adorava aquelas crianças de pais firmes e presentes, modelos de um futuro melhor.

Giovana esforçava-se para ensinar ao filho essas noções de respeito, de certo e errado e de boa convivência. Infelizmente o menino havia puxado o gênio do pai, um homem incapaz de se enquadrar nas normas da sociedade, exímio mentiroso, extremamente egoísta, neutro quanto às próprias maldades e que não se arrependia de qualquer ato e ainda se julgava sempre certo, mesmo que tivesse que fazer um teatro dos próprios sentimentos para corroborar sua falsa santidade.

Luiz aprendeu, acima de tudo, a amar Giovana, por isso aceitava seu filho na medida do possível. Isso não significava, ainda, que ele estava disposto a dividir o mesmo teto que os dois. Por isso o noivado já completava seu segundo ano.

O casamento teria acontecido nos primeiros meses se a solução sugerida por Luiz à Giovana fosse aceita: deixar que o menino fosse viver com o pai, com quem se parecia tanto, não apenas na aparência, como também na personalidade.

Sentindo-se insultada pela ideia, Giovana descartou-a com veemência, o que serviu imediatamente como estopim para a primeira briga séria entre os dois depois de tantos anos de relacionamento. E foi no calor dessa discussão que ambos sentiram uma fenda se abrir no chão, pela primeira vez, quando ela perguntou:

— Se não está disposto a viver comigo e o meu filho, como acha que continuaremos juntos?

— Não vamos — respondeu Luiz, seco.

Giovana poderia anotar aquelas palavras e usá-las para dizer que o relacionamento havia terminado, assim como Luiz poderia usar essa mesma certeza e sair pela porta de sua casa para nunca mais voltar. O problema era que Giovana o amava como nunca amara alguém, e Luiz sentia-se completo ao lado dela como nunca se sentira antes.

Dormiram separados naquela noite, e acordaram juntos na manhã seguinte. A afinidade era tanta, que logo esqueceram essa briga. A segunda, no entanto, foi pior.

Prestes a comemorarem o aniversário do primeiro beijo em um maravilhoso resort em Mangaratiba, Giovana compartilhou o pior dos pensamentos aos olhos de Luiz:

— Meu sonho é voltar aqui ao seu lado, e com o meu filho.

Luiz aceitava que ela pudesse ter muitos sonhos, mas não um que ele jamais estaria disposto a realizar. Assim, tomado por uma vermelhidão nas faces provocada por uma reação de indignação e raiva, disse:

— Então volte sozinha com ele.

Sem entender o que Luiz quis dizer, Giovana o deixou ainda mais irritado ao perguntá-lo o porquê. A discussão que se arrastou por quase uma hora, findou apenas quando ambos concordaram em viver apenas o presente, voltando a não mais se preocupar com o futuro. Mas viver o presente ficou difícil, especialmente quando Luiz disse que jamais aceitaria que o menino vivesse no mesmo espaço que ele, ocasião em que Giovana confessou que nunca abandonaria o próprio filho.

A afinidade ainda existia, a despeito de todas as brigas que agora aconteciam pelo menos uma vez por semana, invariavelmente.

Giovana desejava tanto encontrar uma solução que às vezes chegava a ter sonhos e pesadelos com o assunto, e qualquer que fosse a sequência dessas representações que involuntariamente ocorriam durante o sono, logo corria para contá-los à melhor amiga e madrinha do futuro matrimônio.

Certa vez, compartilhou a seguinte história:

— Essa noite, sonhei que o Luiz e o Paulo César brincavam juntos de cavalinho no quintal de uma casa nova.

Alessandra, sua amiga, balançava a cabeça assertivamente.

Giovana continuou:

— Toda vez que o Luiz se agachava e fingia cair, o Paulo César dava um monte de gargalhadas.

Quando terminou, uma nuvem pesada e carregada de tristeza cobriu o semblante de Giovana. Não era para menos, claro. Afinal de contas, não passava de um sonho.

Outro dia, foi a vez de expor minuciosamente um pesadelo:

— Acordei e não vi meu filho. Procurei a casa toda e nada. Na cozinha, que não era a cozinha da minha casa, tinha um bilhete no balcão. O papel estava amassado e a letra mal escrita, mas eu sabia que era a letra do meu ex-marido. Estava escrito que o Paulo César havia sido sequestrado. Saí desorientada, correndo em direção à casa do meu ex. Chorava muito. Cheguei, não sei como, mas não era a casa dele. Era um lugar escuro, depois de um beco sujo. Tinha gente caída nos cantos das paredes. Estavam dormindo ou estavam mortos, no chão totalmente molhado. — Giovana fez uma pausa. — Consigo lembrar e sentir até mesmo a umidade do lugar. Foi horrível.

Alessandra pôde ver os olhos de Giovana encarando o nada, as pupilas dilatadas nas imagens de outro plano.

— Com muita dificuldade — retomou Giovana —, abri uma porta de ferro que estava emperrada que sujou de ferrugem toda a minha mão. Quando entrei, senti um fedor horrível. Não sei explicar o que era, mas fazia o meu nariz e os meus olhos arderem. Eu mal conseguia respirar ou enxergar. De repente, encontrei o meu filho em uma cama. Quando eu cheguei perto, meu ex-marido me acertou com um pedaço de ferro na cabeça. Caí na hora, e assisti, fora do meu próprio corpo, quando ele me pegou no colo e me colocou na cama.

Alessandra incentivava a amiga a continuar a história agitando ansiosamente a cabeça.

— Depois, ele me estuprou, e foi horrível assistir, impotente, a tudo que ele fazia comigo.

Alessandra parou boquiaberta. Giovana prosseguiu, ainda assim:

— De repente, vi o Luiz encontrar o bilhete na cozinha. Reparei uma aliança em seu dedo. Nós estávamos casados. Ele correu e chegou ao mesmo lugar onde eu me encontrava morta na cama. Mesmo sonhando, sentia apenas vontade de chorar e gritar.

Giovana esfregou a mão na garganta e no peito, como se ajeitasse algo enorme preso dentro de si.

— Por fim, Luiz pegou o Paulo César no colo e saiu correndo.

O pesadelo foi tão intenso que Alessandra repetiu a narrativa de Giovana à própria mãe, uma mulher de várias crenças que apelava suas causas ao santo, papa ou divindade que mais apetecesse ao julgar qual seria mais capaz de atendê-la.

A mãe de Alessandra, em choque, dessa vez não suscitou nenhum santo, papa ou divindade, mas sim o endereço de uma mulher cuja vidência, cartomancia e leitura de búzios eram “tiro e queda”.

Ainda disposta a encontrar uma solução para as brigas, qualquer que fosse a solução, Giovana aceitou, de imediato, a sugestão de Alessandra. Espírita como era, acreditava que algumas pessoas pudessem ser dotadas de uma faculdade que para muitos seria sobrenatural e, por essa razão, visitaria, sim, a tal mulher.

As duas foram juntas até o endereço. A casa de teto vazado e longos penduricalhos que serviam como cortina para as portas, cheirava a incenso, e a despeito do estereótipo que tinham em mente, foram recebidas por uma mulher de boa aparência com pouco mais de quarenta anos.

Após ouvir atentamente o sombrio sonho de Giovana, a senhora, que amparou suas mãos o tempo todo sobre o próprio punho, disse:

— Está atrasada, minha filha. Essa vida era para ser somente sua e de seu companheiro, como está escrito. Mas está atrasada, minha filha, muito atrasada. Era a sua vez de ser feliz.

Envolta em uma atmosfera de suspense, Giovana perguntou:

— Atrasada? Atrasada para o quê?

— Para corrigir os erros de vidas passadas.

— Não estou entendendo. Pode me explicar melhor, por favor? — pediu Giovana, segurando os lábios e os músculos do pescoço que insistiam em puxá-los para baixo para dar início a um choro nervoso.

— Em outras vidas, sempre uma criança a separou de seu verdadeiro amor. Sempre. Sempre, sempre, sempre — repetiu rapidamente a senhora afinando o tom de voz. — Seu companheiro voltou com mais aversão a crianças. Mas, nessa vida, acabou tendo, outra vez, um filho com a pessoa errada, a pessoa que achava que era o seu verdadeiro amor. Essa pessoa aprendeu a mentir cada vez melhor para conquistá-la.

Uma parte de Giovana entrou em pânico. Estaria tudo tão predestinado assim? Como uma vida, como a de seu filho, poderia representar sua infelicidade? Pior: a infelicidade eterna, um erro de outras vidas. Como?

— Houve um homem perdidamente apaixonado pelos seus encantos, que nunca conseguiu chamar a sua atenção. Esse homem, sim, era o seu amor, e juntos tiveram uma menina. Linda. Linda, linda, linda. Mas também havia outro homem que, por ciúmes da beleza dela, e da sua felicidade, a sequestrou e a usou para te matar. O assassino conseguiu se tornar seu marido nas vidas seguintes, inclusive nesta.

As palavras chegavam aos ouvidos de Giovana com violência.

— Seu verdadeiro companheiro, jurou nunca mais ter filhos para não a perder outra vez. Mas agora… Agora é tarde, minha filha.

— Por que é tarde? O que posso fazer? — questionou Giovana, aos prantos.

— Tire-o de sua vida, antes que o perca de uma forma pior.

— Mas eu não o quero fora da minha vida — vociferou ela, sem saber, ao certo, quem deveria tirar de sua vida, se o filho, ou Luiz.

— Só um tempo, minha filha. Só um tempo. Ele irá sempre te buscar.

Giovana deixou a amiga em casa e acelerou o carro em direção à residência de Luiz. Ninguém atendeu. Um senso de urgência cresceu de forma descontrolada dentro de si.

Chegando em casa, deparou-se com a porta da frente aberta. Seus ossos gelaram. Havia algo estranho, e ela não sabia dizer se seu mau pressentimento era falso — a babá poderia ter esquecido a porta aberta, quem sabe? —, ou se era a estranha sensação que tivera e ainda estava tendo desde que fora embora da casa da senhora que detalhou seu passado de outras vidas.

Giovana entrou. Os móveis estavam foram do lugar. Um vaso branco estava totalmente partido no chão, a terra espalhada, uma orquídea pisoteada. O cenário piorou à medida em que caminhava, especialmente quando passou a ouvir o choro de Paulo César.

Ela correu, ignorando tudo que estava ao redor. Ao chegar à soleira da porta da cozinha, viu o filho no colo do ex-marido. Deu um passo e congelou ao reparar uma espessa trilha vermelha no chão, indo de um canto ao outro, como se um esfregão com tinta guache tivesse sido usado para limpar o piso.

Quando seus olhos encontraram o fim do rastro, viu Luiz, olhos abertos e estáticos, peito ensanguentado e perfurações visíveis na camisa.

Nunca Giovana sentira pavor tão grande como esse, capaz de embrulhar o estômago e ainda assim congelar todos os seus movimentos. Faltaram palavras, nada vinha à boca, tampouco murmúrios ou a bile do estômago revirado pela cena.

— Ele queria matar nosso filho, Giovana. Nosso filho — disse o ex-marido, soluçando convulsivamente em meio ao choro, enquanto a criança, sem seu colo, esperneava e gritava exaustivamente, “não bate, papai! Não bate!”.

Giovana sabia bem que se tratava de uma mentira, palavras de um assassino que a rondava em todas as vidas.

Em um único momento, Giovana relembrou o amor que tinha por Luiz, o pesadelo, as palavras da senhora. Era a vez dela de ser feliz, não era? Por que, então, aquilo estava acontecendo? Por que cometeu os mesmos erros? Por que deixou se enganar tanto?

Giovana deu um primeiro passo como se arrancasse um pé que estava mergulhado em cimento prestes a secar. O segundo, foi mais fácil, assim como o seguinte, até alcançar a faca que estava no chão.

O ex-marido ajeitou o filho no colo e estendeu um braço prestes a pedir que ela não avançasse sobre ele, mas a faca percorreu uma trajetória diferente.

— Não — gritou o homem. — Não faça isso, por favor! Fui eu! Eu não suportei ver esse seu noivo babaca brincando com o nosso filho. Não suportei!

Luiz brincando com o filho? Uma possível aceitação? Os três juntos? Não, não mais. Estava mesmo atrasada.

Na certeza de que Luiz sempre voltaria a procurá-la, Giovana terminou o corte na própria garganta.

Gustavo Scussel