Bebeu de um elixir poderoso diretamente do âmago dela.
Logo na primeira manhã, Douglas sentiu-se como que colado a ela. Encontrava-se abraçado a ela, era verdade, mas o braço dele, ao redor de Augusta, estava, de fato, como que colado. Esse detalhe lhe causou estranheza muito maior do que acordar abraçado a alguém, pois, em sua mente, eram claríssimos os momentos e as razões para as demonstrações físicas de afeto. Tinha para si que as demonstrações daquela primeira noite, por exemplo, eram perfeitamente justificáveis, desejáveis e necessárias; mas, uma vez aplacado o prazer de ambos, tudo tornava-se um preparativo para a despedida, e aquele abraço, não só era desnecessário, como também ridículo. Não era de seu feitio, portanto, dormir junto, muito menos pôr a si mesmo em alguma situação em que pudesse demonstrar afeto físico, quem diria durante o sono.
Sozinho sob a ducha — estava na banheira, e na banheira havia uma ducha —, surgiu uma nova razão de incômodo, que acabou por se juntar àquele incômodo inicial: todo o corpo dele que parecia colado ao de Augusta tinha um cheiro diferente, não-identificável e imune ao sabonete líquido e à esponja. Esfregava, cheirava e não acreditava: o cheiro permanecia. Forçou tanto que a pele começou a descascar e, nesse momento, frustrado, desistiu. Saiu do banho irritado, de toalha na cintura, pronto para se vestir e ir para o trabalho, deixando Augusta na cama para que acordasse sozinha e sozinha entendesse que, naquele momento, sua presença não era bem-vinda. A motivação de cumprir um objetivo tão fácil e tão simples (vestir-se e ir para o trabalho), malogrou ao vê-la nua e languidamente em movimento — movimento que se restringia ao antebraço que fazia circular o pulso e os dedos entre os lábios íntimos que, devia reconhecer (e enaltecer e guardar na memória para o resto da vista), eram os mais excitantes que havia visto na vida, considerando tudo que neles havia visto e tudo que neles formavam tal composição tão excitante: da parte mais interna para a mais externa, ou seja, do canal até o espaço que se seguia as coxas, encontrava-se, primeiro, uma abertura semelhante ao desenho de uma gota d´agua levemente flexionada na base para um lado, tão perfeita no contorno da entrada que parecia ter sido projetada a partir do conceito de curva de Bézier, e cujo interior dobrava-se em si mesmo rumo a outra câmara, imediatamente posterior, e do mesmo pigmento, mas ligeiramente destituído da cor natural pela sombra que ali recaía; e avançando para a primeira camada mais externa, os lábios íntimos inferiores e superiores, tão delicadamente sobrepostos, tão elegantemente posicionados para esconder a pérola do prazer, e para vigiar com doçura, sem nunca oferecer resistência, a abertura; mais externo ainda, as concavidades simétricas donde brotavam fios brancos e louros dourados da grossura de uma fagulha individual de um escotoma cintilante e da textura das primeiras penugens que surgem em nossos corpos; adiante, em relevo moderadíssimo, os grandes lábios, e mais fios, mas ainda assim escassos e curtos, e menos brancos do que louros, que nasciam apontando para o centro, brandos e maleáveis ao menor sopro, o que diria da língua e do que era mais rígido; e, finalmente, os vasinhos sanguíneos vistos como azulzinhos em razão da interação de cor entre o sangue e a pele alvíssima das coxas.
Ignorá-la demandou força hercúlea de Douglas, pois a simples vista trouxera não apenas as lembranças da noite passada, como também a vontade de as repetir o mais rápido possível — e repeti-las da mesma maneira, na mesma ordem; ou, ao menos, da maneira mais fiel possível àquela primeira vez. A personalidade adepta dos encontros casuais dava o primeiro sinal de rompimento, e nem mesmo o ambiente de trabalho localizado longe de casa foi suficiente para oferecer-lhe alguma distração e afastá-lo desses pensamentos, pois a imagem que fez de si mesmo a beijar intimamente Augusta começava a ganhar os mesmos contornos daquele espaço tão delicado que ele tivera o prazer de saborear. Somente no final da manhã, quando o chefe lhe chamou a atenção, as imagens desvaneceram-se. Não demorou, contudo, para que voltassem, e com uma estranheza particular.
Rose, a diarista que limpava seu apartamento todas as segundas-feiras, ligou:
“Ai, seu Douglas, não sei como explicar. Meu coração tá na boca! Sua suíte virou uma piscina! Tem água até no quarto! Mas o que me matou, seu Douglas, o que me matou foi a mulher. A mulher que está na banheira parecia morta, mortinha da silva, com os braços pra fora e os olhões abertos. Que susto, seu Douglas! Ela ainda tá me olhando, seu Douglas, mas não sai do lugar, não responde, nem respira direito! O que eu faço, seu Douglas?”
Para o chefe, Douglas disse que tinha uma emergência em casa. O chefe, sem demandar qualquer esclarecimento — o estado e o semblante de Douglas denunciavam uma emergência verdadeira — liberou-o de imediato. Ao chegar em casa, Douglas encontrou Rose lívida. Tinha as mãos geladas e atropelava as palavras enquanto o seguia até o quarto. Havia, de fato, água por todo o chão. E, na banheira, como Rose descrevera, estava Augusta. Mas a aparência de uma mulher quase morta desfez-se em um instante.
Augusta ergueu-se da banheira como se estivesse em algum comercial de televisão e caminhou em direção à Douglas com passos elegantes sobre a lâmina d’água.
A caminhada nua e espetacular afogou todas as palavras de Douglas. Mas Rose viu algo totalmente diferente, e todas as palavras que ela disse enquanto afastava-se do cômodo e do apartamento até bater violentamente a porta e sair do prédio, passaram longe dos ouvidos de Douglas.
Como se destituído de vontade própria, Augusta o beijou e, com as mãos escoradas em cada ombro de Douglas, fê-lo ajoelhar-se na água até que a boca dele estivesse na altura do triângulo de pelos dourados. Então, acariciando seus cabelos, deu-lhe vida novamente. Douglas lançou-se assim nela, segurando-a pela bunda, sorvendo e respirando avidamente ela, a partir de onde encontrava-se. Augusta flexionou os joelhos, pôs as duas mãos na cabeça de Douglas e ondulou contra os movimentos que passavam nela como a cauda de um peixe de nado acelerado e, ainda assim, incapaz de sair do lugar. Um dilúvio íntimo envolveu os dois.
Douglas acordou pelo frio e com uma estranha sensação nos dedos. Antes mesmo de abrir os olhos, deu-se conta de que estava deitado no chão do banheiro, e, ao abrir os olhos, notou que seu antebraço estava perfeitamente acomodado entre os seios de Augusta e que dois dedos de sua mão estavam na boca dela, e foi dali que veio o primeiro susto: a boca de Augusta abria e fechava como a de um peixe que sobrevivia calmamente fora da água, sem oxigênio, mas confiante de que a calma o faria sobreviver; e os dentes dela — que arrancavam as primeiras gotas de sangue dos dedos de Douglas —, os dentes pareciam uma cadeia de serras pontiagudas.
Douglas recuou a mão depressa, e o susto foi ao encontro de um pânico asfixiado pelo conjunto repulsivo do que viu diante de si, a começar pelo rosto de Augusta: na região compreendida entre a parte acima da pálpebra superior e a parte abaixo da sobrancelha, havia, de cada lado, três formas irregulares, visivelmente rugosas, ásperas e feias, e coloridas de um verde-esmeralda brilhante nos sulcos dessas superfícies granulosas; os olhos antes belos, transformaram-se em olhos escuros, tomados quase inteiramente pelas pupilas dilatadas que pareciam eclipsar a íris; e a arcada dentária havia se transformado, de fato, em uma sequência de dentes pontudos e sinuosos, apesar de curtos.
Mais abaixo, a pele do ventre tornou-se flácida, gelatinosa e um pouco translúcida, pois mostrava os contornos vascularizados do intestino grosso como uma entranha espectral, fantasmagórica. E logo abaixo, a concha mais sedosa que havia tocado, experimentado, desfrutado…
Uma ária chegou-lhe aos ouvidos e orquestrou seus sentidos para outro rumo. Douglas, sentado, primeiro balançou como se estivesse em uma canoa no meio de uma tempestade, depois tombou como se houvesse sido arremessado, quando na verdade, havia sido coagido, gentil e musicalmente, a dar um último beijo naquela concha de seda.
Gustavo Scussel