Às dez da noite, em ponto, ele abriu a cortina que bloqueava a parede de vidro. Para uma pessoa que não conhecesse o que o hábito de abrir aquelas cortinas àquela hora significava, a presença de uma mulher sentada do outro lado, de olhos fixos na cena revelada, teria sido assustadora, ainda mais dadas as características daquela mulher que, havia pouco tempo, atraía mais olhares por admiração, do que por indiscreta e insensível curiosidade de registrar melhor aqueles sinais escuros sob os olhos e por toda a pele — pele agora esquálida e manchada de tons escuros e vermelhos.
Estevão não se assustava com a aparência dela, tampouco com o fato de sempre vê-la ali sentada, prostrada quase sem vida, exceto pelos olhos atentos à presença e aos movimentos dele, pois, sempre que a olhava, via, antes, ela no passado, em toda sua beleza e alegria e leveza e sensualidade. O que o assustava — o que passara a assustá-lo — era o que não via, o que estava dentro dela e que as palavras dela, sempre incompletas (pois eram sempre mascaradas) não admitiam, mas que davam sinais graves de consequências fatais.
Também, pudera: ela mesma não seria capaz de admitir; era refém do câncer do controle, da vontade de controlar, de possuir, de ser dona. Se soubesse disso, se admitisse, corajosa e conscientemente, teria dito para Estevão, “sim, meu desejo é te controlar de todas as maneiras possíveis”, e assim teria interrompido as metástases de um pensamento tão silenciosamente punitivo que se somava aos tantos discursos que, antes de serem bloqueados pelo vidro que passou a separá-los, misturavam-se aos descompassos verbais dos próprios discursos ditos em voz alta e repetidos e transformados e relembrados em sua própria cabeça em análises trôpegas e cada vez mais delirantes.
Antes da cortina, antes mesmo do vidro, ela dizia para ele:
“Seja transparente, vamos conversar”, “Seja leal, vamos estabelecer acordos”, “Seja empático, vamos nos entender”.
Dizia, mas ignorava tudo que ouvia. Ignorava a transparência dele em tudo, porque desejava, em primeira e única e máxima instância, controlá-lo. Queria que Estevão tivesse a transparência do oxigênio que o rodeava, queria vê-lo por dentro, falar por ele as coisas que ela queria ouvir, moldar a lealdade e os acordos à maneira dela, usar da empatia para conectar o fio que lhe permitiria sempre controlá-lo. E por ignorar tudo que ouvia, anunciava o veredito sobre o fim, sem nunca o aceitar:
“Faltou comunicação, faltou honra, faltou compreensão.”
E sem aceitar, asseverava:
“Ser apenas amigos? Colegas? Não saber sobre o seu dia? Seus sonhos? Nem pensar! Inaceitável! Não depois de ter exposto minha vida inteira.”
Também explicava:
“Sinto que nossa relação regrediu; não gosto porque deveríamos ter um vínculo inquebrável. Tento explicar e te dizer como me sinto; tento te convidar para conversar e para fazer novos acordos; imploro para que continue sendo meu amigo e meu amante; me sinto mal por todas as vezes que nos desentendemos; me sinto enganada quando me diz que passou a dormir às dez da noite, sendo que te conheci e nos aproximamos nas madrugadas. Não entende que, para mim, nossa relação é sagrada?”
Há muito passou a falar sozinha.
Todas as noites, às dez em ponto, Estevão abre a cortina e revela seu quarto. Não se comunica mais com a mulher que o observa, apenas se deixa ser visto enquanto dorme.
Ela, que há muito deixou de saber até com o que ele sonha, guarda apenas a certeza de que, qualquer noite, ele voltará a sair pelas madrugadas e que a cortina permanecerá fechada. Ela já não se dá conta de que, na verdade, é dentro de si que permanecem fechadas as cortinas da razão e do bom senso. Enquanto isso, o corpo vai lhe punindo e maltratando, de dentro para fora; vai morrendo, nela mesma e no coração dele, sem saber — e sem admitir, e sem aceitar — que não há nada sob o seu controle, que nada possui, que nada lhe pertence.
Nem a ela, nem a ninguém.
Gustavo Scussel