Deitou-se, abriu o bloco de notas e, tentando se esquecer dos maus tratos e do ódio aparentemente gratuito de sua própria avó, pôs-se a inventar palavras em voz alta, mania que adquirira ainda pequeno na esperança de ver o dia em que algo mágico e inexplicável o levasse para longe de tudo, principalmente de suas dores. Entretanto, foi com espanto e descrença que Cássio, pela primeira vez, por efeito de uma de suas palavras, viu materializar, em sua frente, uma cintilante fumaça azul, e passando naturalmente a acreditar que havia invocado uma espécie de gênio, deixou o susto anterior ser substituído por um sorriso jubiloso, pensando, no íntimo, em como sua vida iria mudar diante dos pedidos que faria.
— Os cães não herdarão o reino dos céus — disse Filyglis com sua voz caliginosa, embora não tivesse boca.
O sorriso desapareceu tal qual a fumaça. Cássio, confuso, o chamou novamente em vão, e desdenhando o acontecimento, julgando-se estúpido pela realidade que ele próprio distorcera e por um segundo acreditara, desligou o abajur e ajeitou a cabeça sobre o travesseiro.
Um barulho ensurdecedor o fez pular na cama. Um a um, os alarmes dos carros começaram a disparar na vizinhança. Levou a mão ao criado-mudo a procura do abajur, mas antes mesmo de tocá-lo, foi novamente surpreendido: o telhado voou como uma pluma, e em vez de um céu estrelado, viu um verme circular enorme, transparente, semelhante a um tubo.
Quis gritar, mas uma corrente de ar o levou de ponta-cabeça para o interior daquela criatura. Viu-se flutuando, finalmente estático, dentro de uma membrana tubular transparente e intocável. Ao lado de fora, parecia rodeado por estrelas, mas não sabia mais onde se encontrava, se respirava, se estava vivo, nada.
Pouco a pouco, seu corpo se endireitou. Cássio tremia de forma burlesca, respirava custosamente, como se o ar estivesse carregado de tormento. A imensidão de seus pensamentos foi inteiramente dominada pelo pesar de haver cometido um pecado, de ter desejado o indesejável. Praguejou contra si mesmo por ter dito aquela palavra, por ter invocado um demônio homônimo. E o simples pensamento trouxe Filyglis outra vez.
A fumaça azul formou, abaixo de seus pés, uma longa estrada. Novamente apavorado, Cássio tentou se jogar para fora daquela rota, mas a fumaça o abraçou como uma luva. Tentou outras duas vezes, até, por fim, pedir satisfações — para quem ou para o quê, não sabia ao certo.
Filyglis, sem assumir uma forma definitiva, ainda sem boca, perguntou-lhe:
— Por que te afliges tanto diante da oportunidade que tens?
Cássio, engatinhando, trêmulo, indagou de volta:
— E que oportunidade é essa? A de estar preso em um pesadelo?
— Engana-se, pois não estás sonhando.
— Onde estou, então?
— Na Terra, acima e além de todos.
Não compreendeu a resposta. No entanto, finalmente de pé, recuperando o ar e tentando controlar a si mesmo, Cássio perguntou:
— Estou vivo e consciente? Pois se assim estiver, quero uma prova.
Um fio de fumaça bloqueou suas narinas, fazendo-o contorcer-se diante da súbita asfixia. Prestes a vê-lo desmaiar, Filyglis deu-se por satisfeito, dizendo:
— Se morto estivesses, não temerias a morte novamente.
— Então, se estou vivo, o que faço aqui? — A curiosidade, afinal, fez-se maior que a própria raiva.
— Tens a oportunidade de ir onde desejares, espreitar a alma de quem quiseres e de ceifar a vida daqueles que desgostares, tudo para te livres das dores.
Consentiu com a oportunidade facilmente, abraçando as inúmeras possibilidades. Assim, pediu, em certo tom de desafio:
— Quero ver o meu pai.
A fumaça azul se moveu como uma esteira, colocando-o, em segundos, diante de um homem. Como nunca conhecera o próprio pai, teve dúvidas quanto a identidade daquele sujeito. De qualquer forma, valendo-se daquilo que Filyglis lhe prometera, espreitou a alma do estranho.
Havia, sem dúvida, momentos de extrema felicidade que preenchiam aquele coração, mas nada que demonstrasse à Cássio sua relação sanguínea. Então, aprofundando-se em sua alma, tomou conhecimento de um desgosto gigantesco, o qual, inegavelmente, estava relacionado a um filho desconhecido, um filho cuja presença lhe fora privada.
Antes mesmo de lhe examinar melhor a alma, tomando-o, de alguma maneira, como pai legítimo — e que, de fato, era — manifestou seu próximo desejo, sendo atendido e deixado, de pronto, diante de uma mulher quase sem vida, dormindo na calçada, desbotada, arruinada pelos fantasmas que eram deixados em sua cabeça após todas as fugas as quais se submetera. Aquela alma estava, sem dúvida, destruída, manchada pelo abandono e por uma vida miserável, e mesmo que pudesse lhe ceifar a vida para não a deixar se prejudicar ainda mais, como filho, não conseguiu conceber tal ideia.
Avançou novamente, carregando consigo certo ódio. A fumaça o deixou sobre o telhado arrancado do próprio quarto, no exato instante em que a avó constatou o estrago. Ainda gritava o nome do neto entre súplicas e imprecações que, embora fossem voltadas ao infortúnio do enigmático acontecimento, pareceu-lhe, por outro lado, como pragas direcionadas a ele.
Sem hesitar, exigiu de Filyglis, quase suplicante, que ceifasse a vida da própria avó, a qual sempre o demandou excessivamente, requerendo-lhe mais do que o normal com frequência, impondo-lhe limites, horários, regras quase incabíveis.
Cássio assistiu a avó se retorcer, como se estivesse sendo asfixiada como ele fora anteriormente. Ela, de joelhos, padecendo de uma falta de ar cruel, moveu-se à força até o criado-mudo, onde pegou, a custo, uma foto do neto, e colando-a aos lábios e depois junto ao peito, deu-se por vencida face a irremediável morte.
Sentiu-se, subitamente, arrependido. O coração parecia lhe enforcar, e a garganta inchada segurava um choro fora do comum.
Filyglis, vendo a oportunidade, obrigou-lhe a ver a alma de sua avó, desolando-o ainda mais. Assim, notou, incrivelmente tarde, que todas aquelas atitudes que tanto o aborreciam eram, na verdade, fruto de uma preocupação honesta, de um amor que falhara com uma filha, mas não falharia, jamais, com um neto.
— Por favor, traga a minha avó de volta — implorou Cássio.
Logo após a súplica, o ar também começou a lhe faltar. Ele, confuso, perguntou, quase sem voz:
— O que está acontecendo, Filyglis?
Esse, ainda sem forma, o respondeu:
— O seu arrependimento também és uma dor, e não há outro caminho para afastar-se dela senão lhe extinguindo a própria vida.
Se pudesse, ainda acrescentaria, em tom de conselho, que o espaço entre o desejo e a atitude é essencial para evitar inúmeros dissabores; mas Cássio, assim como a avó, também se encontrava morto.
Gustavo Scussel