Incoerência

personality_10Bruno ouvira perfeitamente bem o que Clarissa dissera. Mais claro, impossível: dois verbos precedidos de preposição e o substantivo masculino chulo, monossílabo tônico, ainda por cima. Se Clarissa escrevesse, seria capaz de acentuá-lo. Gramaticalmente, estaria incorreto, e ela bem mandaria os gramáticos para tal lugar, também. Para Clarissa, palavrão é palavrão e, portanto, está acima das regras comuns das palavras civilizadas. Assim, carece, naturalmente, de designação gráfica apropriada, como acento agudo, por exemplo.

Mesmo acostumado à bipolaridade, a reação impetuosa e verbalmente violenta de Clarissa assustou Bruno. De extremos, ele conhecia apenas a transição repentina da felicidade para a tristeza, do bom para o mal humor, da euforia para o tédio. Nenhuma delas, entretanto, eram marcadas por palavras obscenas ou grosseiras. Direcionadas a ele, então, inimaginável. De qualquer maneira, o ineditismo estreava algo: as agressões verbais.

Para Bruno, restou somente a gargalhada. Caso os próximos palavrões dependessem dele, a inauguração de tal momento seria um fracasso: se, por um lado, Clarissa era a pura definição de ciclotimia, Bruno era, em contrapartida, a de inabalável tranquilidade. Justamente por essa disparidade — e cumprindo o clichê dos opostos que se atraem —, o relacionamento já durava cinco anos. Ele, de maneira alguma, retrucaria qualquer afronta.

— Você é muito incoerente — dissera Bruno, logo antes da mudança brusca no espírito amistoso do diálogo.

De fato, Clarissa o era, e muito, como fruto da própria predisposição em alternar frequentemente o comportamento. Na ocasião, Bruno citou isso. Não tentava, de maneira alguma, mudá-la; pelo contrário: desejava, apenas, deixá-la ciente da assídua incongruência. O puro despertar, talvez, melhoraria ainda mais a relação. Por um momento, não foi o caso, pois piorou, radicalmente, a qualidade do sentimento existente entre ambos. Por sorte, a gargalhada de Bruno contagiou Clarissa. No instante seguinte, esqueceram-se da agressão verbal — se assim, evidentemente, ainda poderia ser chamada.

O episódio não representou nenhuma mudança. Clarissa, inclusive, o esqueceu completamente, ao contrário de Bruno. Nos mínimos detalhes de uma vida à dois, ele continuava notando as frequentes incoerências por parte dela que, por vezes, influenciavam até no banal. Ela dizia, por exemplo, que não mais pintaria as unhas de vermelho e, de repente, surgia com o tom escarlate nas pontas dos dedos. Ele, naturalmente, ria para si mesmo, às vezes até insinuava o motivo para Clarissa. Ela, por sua vez, não compreendia ou associava nada, fosse uma advertência ou pista, direta ou disfarçada. Se ele explicasse, correria riscos desnecessários — o de encarar uma nova mudança de humor, ou carregar outra agressão verbal.

Valendo-se da boa memória, e desafiando o nível de incoerência de Clarissa, Bruno resolveu repetir o mesmo diálogo que culminou na ofensa. Começou, conforme a primeira vez, pontuando algumas ideias. Avançou devagar. Então, finalmente, repetiu a constatação: “Você é muito incoerente”.

Outra vez, Bruno ouvira perfeitamente bem o que Clarissa dissera. Mais claro, impossível: um simples “eu te amo”, incongruentemente compatível, consistente, livre de contradição.

Gustavo Scussel