Inexcedível

inexcedivel“Inexcedível” — foi a palavra que Nicolas encontrou. Antes, inventou (ou tentou, pelo menos) um defeito, mas o defeito fez-se insustentável. Observava-a pelo reflexo do espelho e pensava sobre o amor. E pensava sobre o amor como as pessoas velhas e infelizes pensavam sobre o amor: com desconfiança, cheio de suspeitas. Talvez porque, certa vez, ouvira e acatara como verdade, que o amor e a felicidade não se topavam, que eram como pessoas que não se olhavam ao se cruzarem na rua. Por esse motivo, ele tentava desmistificar a mulher amada. Entretanto, nada, absolutamente nada, parecia inservível nela. Para Nicolas, Giovanna era, sem sombra de dúvidas, inexcedível em todos os seus traços. Mas se estava amando, pensou, não poderia estar feliz; e se estivesse feliz, não poderia estar amando.

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Olhou-se no espelho como se estivesse seduzindo a si mesma. De fato, Giovanna estava. Flertava, frequentemente, incontáveis vezes com a sua cópia. Sorria para a própria beleza, arqueava a sobrancelha, repousava os dedos contra o rosto e deslumbrava-se com graciosidade. Via a si mesma por meio de seus olhos, e dos olhos dos outros também. Acabava, por fim, subornada a uma entrega inexistente, de si para si, e então fugia do próprio desejo. Mesmo nisso, sem jamais tomar conhecimento da opinião do homem amado, ela era inexcedível.

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Nicolas tira Giovanna da frente do espelho. Crê, com total veemência, em sua perfeição. Encanta-se por suas mãos, pelo esmalte vermelho que tanto adora, pela maquiagem que delineia seus olhos e sobe em um traço sutil que vai além dos cílios. Extasia-se diante de sua roupa, do decote trançado por uma corrente prata diáfana. Ama, ama sim; e é feliz em sua convicção. Diz a ela exatamente o mesmo, lábios nos lábios, quadris encaixados, corpos amarrados em um abraço desesperado por sentimento, mas inexcedível na demonstração, pois ele ama e deseja na medida certa.

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A familiaridade daquele desejo a toma com naturalidade. Giovanna entrega o seio, a alma, o coração. É na boca de Nicolas que encontra a si mesma; é, também, na boca de Nicolas que se embaraça, que se confunde. Sente que o tem — na pele, nos braços, no liame de seus lábios ao bico do peito. Sabe que o tem, que o possui, mas não basta tê-lo assim. Não sabe se pode perdê-lo, e ao desconfiar que pode, não sabe se seria capaz de reencontrá-lo. Ou melhor: não sabe ou não quer saber, tanto faz. O que Giovanna precisa é de uma dose de lua-de-mel diária, de um desejo com desfecho certo. Inexcedível, afinal, na entrega e nos receios.

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Dividem o prazer, a cama, a mesa do café e a sala de estar enquanto ela toca violão e canta. Ele a escuta com puro deleite e admiração. Sente a voz de Giovanna reverberar em seus ossos. Ele ama, ama sim; e é feliz, e por isso quer encontrar um defeito.

E ela canta, canta cheia de alegria, para si mesma, deliciando-se com a própria voz. Ela sente que o tem e não sabe se pode perdê-lo. Canta, por fim, para não perder a si mesma.

Gustavo Scussel