O alvará passional

“Helô?”

“Gil?”

Reconheceram-se assim, mutuamente, e logo com os apelidos de infância: nada de “Heloísa”, nada de “Gilberto”.

“Casou?”

“Casei!”

“Tem filho?”

“Uma menina! Linda! Vai amar ela, Gil! E, te conhecendo, sei que ela vai te amar também!”

“Quando? É só dizer!”

Ela disse e estava combinado, com números de telefone trocados e o endereço salvo no aplicativo de notas do celular.

Jantar a quatro: Heloísa, o marido e a filha, e Gil. Helô estava certa: a filha amou o amigo de infância da mamãe, e Gil, por sua vez… bom, era evidente. Mas a brincadeira, para os dois, acabou mais cedo: a filha tinha horário para dormir e regra era regra.

Somente os três, álcool liberado. Viraram a meia-noite e várias garrafas. O marido de Helô, no embalo etílico e com a língua enrolada, soltou:

“Gil, Gil! O amor de infância e da adolescência da minha mulher!”

Risadas. Gil sabia, e Helô sabia que Gil sabia. Gil só não sabia que o marido dela sabia, e por isso parou de rir antes.

A verdade era que nunca tiveram tido uma chance concreta.

“Sabe, Gil”, retomou o marido de Heloísa, de repente com total controle sobre a dicção. “Acho que deveriam passar uma noite juntos.”

Silêncio.

“Como assim?”, rebateu Gilberto.

“Assim mesmo, como entendeu. Há um passe-livre em seu nome.”

“Passe-livre? Jura?” Gil perguntou, primeiro, para Helô, depois, para o marido. Depois, mentalmente, para si mesmo.

Todos responderam e juraram, menos ele.

A vontade reacendeu nele com tudo. Se queria, e se podia, por que não? O “não” estava no semblante do marido; e foi algo no semblante do marido da velha amiga que o segurou. Não apenas nesse semblante suspeito, mas também naquela súbita dicção perfeita que Gil simplesmente acreditava ser impossível dominar e controlar em uma pessoa que havia bebido tanto quanto ele.

Gil recusou, mais por receio do que por respeito.

O marido, então, pediu licença para ir ao banheiro.

Helô avançou sobre a boca de Gil:

“Aceita! Aceita!” Cada palavra foi um beijo que ela não conseguiu cravar na boca dele.

O marido voltou. Foi a vez de Helô ir ao banheiro, e o marido logo disse, em tom de confidência para Gilberto:

“Sei que deve ser estranho, eu mesmo estranharia, mas… É um desejo meu também, sabe? Ver minha mulher… se é que me entende.”

E então, como se estivesse lendo os pensamentos de Gilberto, o marido ainda acrescentou:

“Pode ser aqui mesmo, na sala, ou no quarto, à meia-luz, mais íntimo, mais aconchegante. Se topar, vá logo para o banheiro. Surpreenda ela!”

Gil foi. Deu de cara com Helô deixando o cômodo. Beijaram-se e ela o puxou para o quarto. Que loucura e que adrenalina desde o primeiro beijo ao momento em que viu o corpo nu da velha amiga, até mesmo quando reconheceu a presença e o olhar do marido dela pela porta entreaberta do quarto do casal. Entregava-se cada vez mais, e o que antes o segurara estava prestes a desaparecer, por completo, quando o semblante de Helô revirou diante de seus olhos.

Não deu tempo: a cabeça dela foi perfurada com violência e arremessada para trás. Depois foi a cabeça de Gilberto que acabou sendo lançada sobre o ombro de Heloísa.

O marido, por fim, viu-se livre, livre para fugir para a casa da amante e viver com a mulher que amava. A dicção estava ótima.

Gustavo Scussel