O dono e o gato

Foi em nome do amor que Evandro abriu mão do rigor de uma de suas maiores regras e aceitou Lara e o cachorro dela em sua casa. Entretanto, sendo um eterno amante dos gatos (e somente dos gatos) e julgando-se tão conhecedor da natureza solitária e emocionalmente frágil que faz com que todos os donos de cães queiram sempre mais e mais cachorros para preencherem seus buracos existenciais, não se desfez da regra por completo, e Lara, a princípio, aceitou a nova condição de jamais acolher qualquer outro cão.

Seu gato, um espécime raro e com atestado de linhagem pura de raça guardado cuidadosamente na gaveta da mesa de trabalho de Evandro, reagiu, inicialmente, com a típica indiferença felina que durou somente o tempo de assistir o cachorro esparramar sua comida por todo o chão da sala. Sabia que estava condenado, a partir daquele instante, a uma vida miserável naquela casa — e estava certo.

Evandro, homem bem sucedido aos trinta e cinco anos, viu-se, no decorrer de um mês inteiro, diante de uma situação inusitada: seu lar, outrora tão organizado e limpo, transformou-se em um ambiente desordenado e fedorento. O cachorro era, nesse aspecto, o culpado, de fato.

Os desentendimentos entre ele e Lara cresceram de forma assustadora. Evandro esperava dela apenas as responsabilidades comuns ou desejáveis, esquecendo-se, sem querer, de que o seu bom-senso não era, geralmente, o bom-senso compartilhado universalmente; ou seja: esperava que ela, como dona do animal, o limpasse ou o deixasse no quintal enquanto estivesse sujo; que o educasse e o mantivesse longe dos móveis, do quarto e, principalmente, da cama de casal, lugares que nem mesmo seu próprio gato pisava ou se aventurava a pisar.

Nada adiantou, e a relação entre os dois deteriorou-se consideravelmente, e a atmosfera silenciosa que Evandro e seu gato dividiram no passado, não apenas se tornou sonoramente poluída, como também tóxica nas poucas ocasiões em que o sossego era apenas o resultado de dois corações desentendidos e machucados que preferiam se calar um para o outro.

Decidido a reestabelecer a ordem, o gato se pôs a usar da própria agilidade, combinada com a estupidez do cão, em um plano maquiavélico, empurrando a bolinha insuportavelmente suja e malcheirosa preferida deste último, hora em direção ao cesto de roupas, hora em direção ao carro estacionado na garagem, aos sapatos, tênis e chinelos da dona, e exclusivamente da dona.

O plano surtiu efeito, mas não o desejado, pois Lara passou a culpar Evandro pelo estresse que o cachorro externava. A solução, no ponto de vista dela, dependia da adoção de um novo amigo para seu animal de estimação, ideia a qual ele se opôs imediatamente.

O gato elaborou outro plano, esse, um pouco mais grave: empurraria a bolinha portão afora.  Contudo, antevendo as consequências — Lara poderia culpar Evandro do súbito desaparecimento do animal —, logo desistiu da ideia. Em vez disso, ele mesmo passou por cima do muro, decidido a encontrar um novo lar, longe desse delírio vivido por aquele que, um dia, teve o prazer de conviver durante anos.

Gustavo Scussel