O preferido

o_preferidoNo instante em que Bruno ligou o celular, iluminando, assim, parte do quarto, um dedo cadavérico saltou da tela. Uma unha fétida tocou-lhe o lábio, enchendo-o de asco. Completamente apavorado, sentou-se na cama e limpou a boca com as costas da mão às pressas, como se uma mosca varejeira tivesse pousado ali. Tremia e rezava, mantendo os olhos fechados com força. Sabia que, no íntimo, o que quer que estivesse acontecendo com ele, não se tratava mais apenas de um pesadelo, mas sim de seu futuro e, especialmente, da vida de sua irmã.

Na manhã seguinte, as olheiras denunciavam a noite em claro. Laís arriscou, tão logo saíram para o intervalo das aulas:

— Os sonhos voltaram?

— Pesadelos — corrigiu ele. — Na verdade, nunca pararam. Mas ontem…

Bruno crispou-se. Por um instante, viu novamente o dedo diante do rosto, logo após aquelas palavras que ecoaram com nitidez em seu sono.

— Mas ontem… ? — incentivou Laís.

— Esqueça. Não quero falar sobre isso.

— Que novidade! — exclamou, subitamente irritada.

Quando Laís virou-lhe as costas, Bruno, em um impulso familiar, a segurou pelo braço.

— O que você quer, hein?!

— Por favor, me entenda — pediu ele, o cansaço presente na fraqueza das palavras.

— Não, Bruno, não tem como! Tudo o que você faz é estudar e trabalhar; estudar para se tornar um médico e salvar a sua irmã, e trabalhar para ajudar nas despesas da casa. Mas enquanto faz isso, você se esquece dos outros e, principalmente, de si mesmo — disse, por fim, enfatizando sonoramente o final. — Por isso nós terminamos!

— Ela está morrendo — balbuciou Bruno, desarmando-a completamente.

Levemente balançada, Laís encheu os pulmões mais do que o normal, lutando contra os olhos marejados. Então, disse, segurando-o pela cintura:

— Ela tem uma doença rara, eu sei, mas isso não significa que sua irmã esteja morrendo.

— Está! Eu vi! Ele me falou!

— Ele quem? — perguntou Laís, assustada com o olhar de Bruno e sua repentina palidez.

A resposta, a descrição, a imagem, tudo, absolutamente tudo relacionado a ele, desapareceu da mente de Bruno, e antes que pudesse tentar descrevê-lo, o sino pôs fim ao intervalo.

— Descanse. Por favor, descanse — pediu ela, carinhosamente. — É disso que você precisa.

Quando as aulas acabaram, Bruno acelerou os passos em direção a sua casa, e quando deu por si, percebeu que errara caminho e acabara no calçadão do centro, onde uma menina o encarava provocativamete. Usava uma blusa de alcinha quase imperceptível de tão pequena, e um short cujo cós mal cobria a fineza da cintura. Parecia tão miserável quanto imoral, julgando pelo olhar quase pornográfico.

— Cê qué ela, num qué?

A pergunta (ou seria a mão em seu braço?) o assustou de forma excessiva. A senhora que o segurava era assombrosamente incomum, esquisita. Um de seus olhos parecia atrofiado, escondido na carne das pálpebras. O lábio superior era coberto por um buço repugnante e faltavam-lhe quase todos os dentes, tornando impossível uma leitura labial.

Bruno tentou se desvencilhar em vão. Ela repetiu:

— Qué ela, num qué? Qué sim que eu sei! Fica ca minha filha, fica!

Com um puxão, viu-se finalmente livre. A senhora, aos gritos, prosseguiu:

— E eu sei que ele te qué também! Cê vai morrer! Ahh, cê vai morrer! E num confia nela não, viu, filho? Num confia!

Chegou em casa com as palavras da velha machucando os seus tímpanos. Com o celular em mãos (apesar do medo latente), ligou para Laís. Foi sucinto quanto ao acontecimento anterior. E então, tomado por um choro incontido, disse:

— Ela falou que ele está atrás de mim! Ela falou!

— Mas quem é ele, Bruno? Fala! — exigiu, igualmente descontrolada.

— Não sei! É uma massa preta, sem olhos, sem nariz — começou, sentindo o suor escorrendo pela testa e, até mesmo, pela orelha. — É uma pessoa, eu sinto, mas… mas… — parou. A umidade no ouvido o incomodou a tal ponto que, irritado, sentiu-se obrigado a afastar o celular. Então, mal acreditando nos próprios olhos, viu, com uma clareza inconfundível, uma língua se movendo fora da tela do aparelho, lenta e ondulante, como uma cobra-cega dentro de um furo em um espelho negro.

Tomado por um pavor imensurável, correu para a mãe que andava sempre com um terço na mão. Ajoelhou-se e pediu socorro. Preparou-lhe um chá rapidamente, e enquanto Bruno bebia, tentava acalmá-lo com um gesto maternal inédito, dizendo:

— Descansa, meu filho. Descansa.

A vista escureceu rápido demais. Não, pensou consigo mesmo, ela jamais o chamara de filho, apenas de Bruno. A preferência pela irmã nunca foi um mistério.

Envolto por trevas, reconheceu o dedo e o restante da forma apavorante de seus pesadelos. A voz surgiu pesada, completamente audível.

— Sua vida pela vida de sua irmã.

Bruno entendeu, finalmente, o desejo de sua mãe.

Gustavo Scussel