O provável e o improvável

Conheceram-se cientes dessa improbabilidade, sabendo, também, em puros termos estatísticos, o expoente infinitesimal que os envolviam nessa equação; ainda assim, tão logo se aproximaram, despojaram a matemática do universo e vislumbraram, cada qual em seu próprio pensamento, uma verdade até então ignorada por ambos: estavam diante de suas metades. De fato, Camila e Vinícius eram extremamente parecidos, desconsiderando, novamente, as ciências exatas que cercam qualquer existência. Em comum, possuíam os mesmos valores, a mesma paixão pela leitura e os gostos musicais, e até o mesmo conceito político. Contudo — e apesar de tudo —, embora parecessem (e tivessem sido) feitos um para o outro, moravam nos extremos do país: ele em João Pessoa, ela em Curitiba.

Nos poucos dias em que conviveram juntos em São Paulo, a afinidade entre eles mostrou-se assustadoramente real, simples e sincera, especialmente pela facilidade que avançavam durante o diálogo: no mesmo instante em que conversavam sobre literatura, passavam para a viagem dos sonhos, e dos sonhos para as suas interpretações, e das interpretações para a abordagem psicanalítica de suas representações e, finalmente, para os múltiplos tópicos inúteis que, em segundos, tornam-se valiosos para os envolvidos que são exaltados por uma paixão inexplicável.

Toda a leveza desse encontro chegou ao fim quando retornaram para as suas cidades, e agradecendo, no íntimo, aquela ocasião em que ambos se sentiram especiais e deixaram de ser elementos aleatórios de um universo aparentemente negligente que sorteia os encontros da vida, como um computador avançado cujo impecável algoritmo simula a pura coincidência. Todavia, mesmo separados, encontraram na modernidade uma forma de amortecer aquela separação, e passaram a se encontrar, diariamente, em um programa que os colocavam frente a frente, separados apenas por uma tela.

(Admito como foram felizes nessa decisão, pois tal sentimento, embora nunca fosse se extinguir por completo, inegavelmente se tornaria morno com o tempo caso não continuassem se vendo.)

Durante os encontros virtuais, compartilharam exatamente aquilo que compartilhariam juntos, e além. Não foi, no entanto, sem um misto de surpresa e admiração que Vinícius conheceu os pormenores da personalidade de Camila, inclusive naquilo que facilmente seria sombrio aos olhos de quaisquer outros. (A única confissão, diga-se, que lhe causou espanto, a despeito de seu teor fúnebre e horripilante, jamais se concretizaria, e um pequeno toque de percepção e puro bom-senso, assegurou-lhe disso. Era um segredo e assim permanecerá.)

As conversas que avançavam madrugada adentro com facilidade não os debilitavam para os compromissos do dia seguinte, pelo contrário: ironicamente, passavam despercebidas — seus corpos recusavam o cansaço, e os pensamentos, divididos entre as responsabilidades e a figura do outro, serviam como fonte de energia. Mas o que era inegável e óbvio para qualquer espectador, ainda carecia de uma prova para os dois, de um singelo sinal de certeza.

O símbolo dessa certeza se manifestou em duas músicas, as quais Vinícius compartilhou, levemente receoso, com Camila, pois temia, em segredo, sua opinião. (Camila estava preparada para essas canções havia muito tempo, e também para o que quer que fosse dito na sequência.) E foi tomado por esse medo que Vinícius a assistiu ainda mais atentamente a fim de desvendar o significado de qualquer expressão no rosto de Camila. Seus medos e suspeitas, todavia, foram desfeitos quando notou os lábios dela esticarem-se horizontalmente, e apenas um lado se curvar para cima, abrindo-se, a partir dali, para um sorriso maravilhoso. A incerteza fria que se encontrava suspensa sobre os seus ombros desceu como um manto quente, vestindo-lhe e oferecendo-lhe toda a certeza e desejo de caminhar sempre ao lado daquela mulher, arriscando-se a tudo. (E nele surgiu o amor.)

O refrão da música despertou em Camila a imaginação romântica que se encontrava adormecida, e foi durante esse trecho que sorriu.

 

“One day, baby we’ll be old

Oh baby, we’ll be old

And think of all the stories

That we could have told.

 

Acelerando o tempo e imaginando-se anos à frente, como estava acostumada a fazer, Camila se viu ao lado de um homem de aparência ainda indefinida, mas com a implacável certeza de que este jamais a lhe magoaria, e de que nenhuma história ficaria sem ser contada.

— Essa música me faz pensar em estar ao lado de alguém no fim da vida, e dizer que tudo valeu a pena — confessou, e embora tais palavras pudessem ter saído da boca de Camila, foi Vinícius quem as disse. (E nela surgiu, também, o amor.)

A letra da canção seguinte apenas reforçou aquilo que era um plano modesto de ambos.

 

“Je veux d’l’amour, d’la joie, de la bonne humeur

c’ n’est pas votre argent qui f’ra mon bonheur,

moi j’veux crever la main sur le cœur.”

 

Intimamente elevados, despediram-se e dormiram viajando até o outro em pensamento, felizes e repentinamente completos, como é comum naqueles que são atingidos pelo filho de Vênus e Marte. (Nesse dia, selaram uma expectativa tácita que nada exigiria de extraordinário, porque tratava-se, afinal, do sentimento mais puro, livre de inveja, ciúmes e desconfiança.)

Nos encontros virtuais seguintes, apesar de não exprimirem em palavras o desejo cada vez mais crescente de se reencontrarem, tal vontade tornava-se gradativamente torturante, chegando, inclusive, a provocar silêncios que, longe do desconforto e do constrangimento, na verdade significavam, “como queria estar diante de você agora”; salvo esses raros momentos, a conversa entre ambos mostrava-se tão natural como sempre fora.

Como Vinícius gozava de um emprego estável e boa saúde financeira para atender seus caprichos — eram mínimos, de fato, pois levava uma vida tranquila voltada aos pequenos prazeres, como o cinema e a leitura —, pouco a pouco viu-se diante de um planejamento minucioso para estar ao lado dela. (Camila, diga-se, desejava o mesmo, mas estando no segundo ano de faculdade e possuindo um emprego de meio período, não poderia se dar a esse luxo; faltava-lhe tempo e dinheiro.)

Em momento algum Vinícius deixou transparecer a ela seus planos, e quando estava prestes a comprar as passagens de avião e confirmar a reserva em um hotel em Curitiba, o inimaginável alterou radicalmente seus planos.

A notícia chegou por telefone, e embora não tivesse o costume de atender números desconhecidos, abriu uma exceção incoerente para aquela ligação — incoerente para ele mesmo, pois acreditava que apenas notícias ruins fossem dadas por números desconhecidos.

A voz séria do outro lado da linha perguntou expressamente por ele, e diante da confirmação de Vinícius, a mesma prosseguiu:

— Há pouco mais de um ano o senhor autorizou o desconto de uma mensalidade em sua conta corrente para…

Vinícius, na realidade, não se recordava de qualquer autorização, e enquanto tentava recobrar a memória, deixou de ouvi-la. De repente, despertou do próprio transe.

— O que a senhora disse? Pode repetir, por gentileza? — pediu Vinícius, com a respiração acelerada, como se tivesse corrido para alcançar a informação.

— Pois não. Eu dizia que, o saldo disponível hoje, para o senhor, pode pagar diversos pacotes, inclusive o translado de ida e volta, do aeroporto de sua escolha, além de cinco dias de estadia em praticamente todos os hotéis cadastrados em nossa rede, para diversos destinos. Algumas dessas opções são Punta del Este, Amsterdam, Londres…

De súbito, lembrou-se do dia em que autorizara o pagamento mensal a uma agência de viagens. Naquela ocasião, não possuía qualquer destino em mente; agora, contudo, via Londres surgir diante de seus olhos como uma cortina que se abria e revelava o cenário aos poucos.

A capital inglesa pertencia ao maior sonho de Camila, detalhe inesquecível para Vinícius. A simples possibilidade de poder proporcionar a ela essa viagem o encheu de uma nova alegria, e tamanho foi seu ânimo que, no dia seguinte, não apenas fechou o pacote para duas pessoas, como também adquiriu, separadamente, as passagens de João Pessoa a Curitiba e, mesmo sem qualquer certeza de sucesso, por um segundo sentiu-se convencido de que sua proposta seria irrecusável em todos os sentidos. (Estava certo.) Na mesma noite, conversaram normalmente e, no sábado, pousou em Curitiba.

O clássico “bom dia” que estavam habituados a trocar todas as manhãs pelo celular, dessa vez inquietou Camila, pois estava associada a aquela mensagem despretensiosa, de ar puramente informativo e zombeteiro. “Estou em Curitiba”, dizia. Era verdade? Camila, particularmente, não sabia responder, e a incerteza a assaltou em uma espécie de excitação jubilosa e temerosa — porque desejava que a presença de Vinícius fosse verdadeira, e porque temia que não passasse de uma brincadeira; e se fosse uma brincadeira, pensou ela, seria de extremo mau gosto.

Levou algum tempo para acreditar, e quando confiou na informação de Vinícius, aceitou encontrá-lo na Torre Panorâmica depois do almoço. Depois de se abraçarem demoradamente e de enfrentaram uma enorme fila (ele a convidara para entrar na Torre), resgatarem com rapidez a mesma familiaridade que sentiram em São Paulo.

Quando subiram, Camila não apenas mostrou-se uma companhia ainda melhor do que se lembrava, como também uma guia excepcional, guiando-lhe para o painel de Poty Lazzarotto, recontando a história da cidade gravada no quadro de seu conterrâneo e apontando os bairros visíveis do amplo terraço circular de vidro naquela tarde clara e levemente ensolarada.

(Talvez cause estranheza o fato de não se beijarem; talvez. É importante esclarecer, contudo, que a necessidade do toque, do contato físico, advém, invariavelmente, ou de um vazio interior, ou da falta de um sentimento sublimado. Como estavam envolvidos pelo segundo, as palavras, os sorrisos e a pura presença serviam-lhes como alimento para alma. E quando a sublimação é certa para ambos os lados, o toque se manifesta na mais pura demonstração de afeto, onde os abraços congelam o tempo e os carinhos rejuvenescem a alma dos envolvidos.)

Encerraram o passeio e decidiram seguir para o Park Shopping Barigui, onde um impulso repentino, partindo do diafragma de Vinícius, o fez externar o convite que carregava em seu peito:

— Vamos a Londres?

Camila não soube dizer se era uma pergunta, uma brincadeira ou uma afirmação, porque o ânimo de Vinícius conferiu as palavras dele uma dose das três possibilidades.

— E então — retomou, observando a expressão estática, confusa, surpresa e alegre de Camila. — Vamos a Londres?

— Como?

— Avião!

Camila soltou uma gargalhada apaixonante.

— Não “como, mas de que forma — explicou ela, e percebendo que Vinícius repetiria a mesma resposta, suspirou e reformulou o pensamento e as palavras. — Uma passagem para Londres é caríssima! E não teríamos onde ficar!

— Já tenho as passagens. E o hotel.

Os dois agora estavam parados no passeio, encarando um ao outro — ela visivelmente em dúvida, hesitante; e ele, irrequieto e sorridente.

— Está falando à sério?

— Completamente!

— De verdade? — insistiu ela.

— Uhum.

— Quando?

— Depois de amanhã.

— E de onde sairá o voo?

— Daqui mesmo.

Os olhos de Camila estavam presos aos de Vinícius, e por essa razão sabia que ele dizia a verdade. (E como sabia!)

O final de semana passou em um piscar de olhos para os dois; ainda mais rápido para ela, cujos pensamentos encontravam-se desde o primeiro momento em solo britânico. Com efeito, fez as malas de modo automático; e como havia conseguido convencer seus pais era, sinceramente, algo perdido nas lacunas da memória.

Dentro do avião, por um segundo, pensou que estivesse sonhando, e compartilhou o pensamento enquanto olhava o movimento ao redor da aeronave.

Durante o voo, e enquanto ela expandia seu mundo com os olhos, Vinícius aproveitou de bom grado o deslumbramento dela pelo mundo visto pela janela, para memorizar todos os traços do perfil de Camila. Era incrível como admirava seu cabelo, a simplicidade do nariz, as sobrancelhas, a curva exata da hélice da orelha, os pontinhos castanho-claros nas bochechas… tudo!

Desembarcaram e pareciam em lua-de-mel. Todas as conversas eram entremeadas de alegria; todas as novidades eram partilhadas na mesma sinceridade; cada vez que um apontava algo com o dedo para o outro, este se virava rapidamente, e teciam algum comentário sobre o objeto, o lugar.

Na Charing Cross Road, Camila nem sequer se dera conta de que os passos de Vinícius a levavam em direção a Cecil Court. Quando a rua estreita despontou diante dela, com todos seus prédios vitorianos seculares, os postes de luz no centro e as inúmeras livrarias com suas fachadas verde-mar acetinas e amontoadas de livros nas vitrines, uma sensação tão amistosa apoderou-se dela que, no instante seguinte, puxou Vinícius pela mão em direção a porta mais próxima.

A primeira loja era um antiquário, onde Camila comprou uma reimpressão de um mapa-múndi magnífico de Tobias Lotter, e Vinícius, um selo para cartão postal da London Tower Bridge. Depois, saíram e entraram na porta seguinte, saindo na sequência, assustados com os preços dos livros. Na próxima loja, os preços exorbitantes se repetiram, mas Camila não resistiu a poltrona de couro marrom Chesterfield ao lado de uma das primeiras impressões de Emma, de Jane Austen, sentando-se nela para folhear as primeiras páginas. Vinícius aproveitou a ocasião e, escondido, saiu a procura de um café. Quando voltou, Camila estendeu a mão sem tirar os olhos do livro, como se esperasse exatamente aquilo. Ele, claro, não se sentiu menosprezado, pois, no íntimo, comunicavam-se também nesse novo silêncio, e compreendiam, sem palavras, os pequenos desejos e pensamentos do outro.

Quando terminaram de conhecer todas as lojas da Cecil Court — conheceram todas, de verdade — o céu estava colorido de matizes azul-marinho, pintando um verdadeiro pôr-do-sol europeu. (Eles finalmente se beijariam nessa ocasião, se o único conhecido de Camila que morava exatamente em Londres, não passasse ao lado dela reconhecendo-a de imediato; e realmente estiveram perto de expressarem pela primeira vez o afeto legítimo que construíram. A propósito, Vinícius se encantaria mais com os lábios dela, do que ela, com os dele, mas Camila, acabaria mais encantada com a ternura que ele empregaria ao conjunto do beijo, segurando-lhe a face com as duas mãos, provocando-lhe a inteira sensação de ser amada e desejada.)

Rapidamente apresentados, Rafhael direcionou o convite a Vinícius demonstrando um respeito praticamente inglês, e os três seguiram para o apartamento do primeiro, onde as horas avançaram consideravelmente.

A bem da verdade, o anfitrião foi um mero espectador da conversa dos dois, limitando-se a sorrir cordialmente e, vez ou outra, a acrescentar um comentário que eles desenvolviam melhor do que ele seria capaz.

Perto das onze da noite, Vinícius, surpreso com as horas, levantou-se para ir embora. Camila encontrava-se de pé quando Rafhael os surpreendeu com a proposta:

— Durmam aqui. Há dois quartos onde podem ficar tranquilamente.

Sentindo o cansaço pesar sobre os ombros de ambos, a proposta provocou um alívio imediato, em especial quando aceitaram. Vinícius pediu licença e foi em direção ao banheiro.

Após servir um copo de água a Camila, Rafhael sentou-se ao seu lado e, abandonando toda a respeitabilidade inglesa aparente, tomou-lhe o rosto de modo brusco cobrindo-lhe a boca com um beijo atrevido e grosseiro, o qual Camila retribuiu. (Não é assustador que o tenha feito; o beijo que estava pronta a retribuir era o de Vinícius, mas o lábio, que se envolve cegamente neste toque, não é capaz de discernir, por vezes, o responsável por esse contato entre duas bocas. Não era, portanto, culpada de nada — nem ela, nem Vinícius.)

O beijo cessou rapidamente, pois Camila logo se afastou. Vinícius retornou e notou algo diferente no rosto dela, mas não soube dizer se era uma falsa impressão em virtude de um súbito ciúme por tê-los deixados sozinhos. A atmosfera que perdeu energia em um curto espaço de tempo, logo os levou a se retirarem para os seus quartos. No dia seguinte, Camila mal tomou o café da manhã. Ele soube, imediatamente, que ela desejava ir embora, e por isso tomou a dianteira ao agradecer a hospitalidade e dizer que estavam de saída.

Camila foi consumida por um sentimento de traição irreal, completamente ilusório. (Um coração como o dela a deixava à mercê dessa nebulosa inquietação, dessa falsa acusação contra si própria.) Tal ideia corrosiva de uma infidelidade incongruente, a levou a se desconectar dos momentos partilhados com Vinícius de uma maneira irreparável, intoxicando seu bom julgamento e levando-a a contar, em tom de confissão, justamente quando encontravam-se no aeroporto, prestes a embarcar, o acontecimento da noite anterior, aquele beijo proibido, sujo e errado que dera em Rafhael,

Durante o embarque e a decolagem, Vinícius não soube como olhar para ela, e a paisagem londrina que ia se apequenando ao lado de fora do avião, parecia proporcional ao valor que tinha de seu próprio caráter.

Em Curitiba, despediram-se sem grandes emoções, e o contato finalmente se tornou morno. Por fim, separaram-se de uma vez por todas, mas nunca se perderam em pensamentos.

A reparação por esses momentos seria indenizada nos primeiros anos de casamento, uma vez que, de fato, se casariam. A felicidade que os aguardava, era, com toda certeza, uma obra-prima, leve, descomplicada, serena. Quantas vezes o colo de Vinícius ampararia a cabeça de Camila e o amor seria renovado enquanto ele acariciava seus cabelos? E quantas vezes os problemas sucumbiriam ao humor e ao otimismo de ambos? Quantas vezes, ainda, olhariam o outro com a certeza de que transcenderam o próprio egoísmo e passaram a viver para quem tanto amavam? Viveriam do amor, da alegria e do bom-humor, mas, infelizmente, se perderam, pois um único obstáculo, nada além de uma mera prova, os distanciaram da fé em si mesmos.

(Haverá, um dia, alguém cuja criatividade contará história semelhante à de Camila e Vinícius; e haverá, também, um dia em que a história servirá de alerta àquele que for Vinícius, e àquela que for Camila, para que nunca se esqueçam, que os grandes obstáculos, tais quais as distâncias, tornam-se pequenos quando não desistem de um amor verdadeiro.)

Gustavo Scussel