Paraíso ácido

lsd-mushroom-experiencePegou o pequeno pedaço de papel e pôs sob a língua. Quem o entregou a ela, nem sequer precisou instruí-la. Jéssica já estava habituada: bastava entrar em uma boate para desejar outra festa, mais intensa, colorida e particular, com sons mais puros e delirantes. O paraíso em outra dimensão, preenchido por fractais de infinitos espectros luminosos, onde nuvens, flocos de neve, vulcões, pessoas, animais e monstros coexistem em uma sucessão rápida e cambiante de cenários, sensações e impressões. O tíquete para essa viagem premiada já estava em sua boca, restava apenas esperar. E assim como um viajante que ambiciona esquecer-se do tempo durante o trajeto, Jéssica fecha os olhos.

Apenas a música a preenche por vinte minutos. Ou melhor: apenas os arranjos eletrônicos das caixas de som, as conversas e as risadas a preenchem. Jéssica não precisa abrir os olhos: sabe que os amigos estão ao redor, em círculo, e que ela faz parte desta ciranda. Sabe quem está conversando, rindo e fazendo observações sobre outras pessoas. As vozes estão mais nítidas. São belas. Têm vida. Têm cor. Sim, têm cor. A voz da Lu é cor-de-rosa, delicada; do Otávio, azul-marinho, ansiosa; da Sabrina, violeta, alegre; e a voz de Mateus não tem cor, tem textura, palha de aço e veludo — arranha o ouvido, mas afaga o peito.

Jéssica espia. Abre os olhos e a boca. Tem motivos para sorrir. Agora, ainda mais, pois a felicidade parece evocar mais felicidade. Estar feliz muda tudo: corrige o ponto de vista, reforma as angústias e aperfeiçoa o mundo. Até mesmo reconhece que todos estão mais bonitos: os cabelos estão mais compridos e bem penteados. O de Sabrina, por exemplo, flutua, ondula com elegância. Parece comercial de xampu. E ela parece modelo.

Todos possuem ângulos faciais lindos, magníficos. O grupo, segundo ela (conforme o ácido), é uma variedade de moldes singulares. Lu é ideal para ser reproduzida em escultura; Otávio, em fotografia; Sabrina, em pintura. Só não consegue encontrar destino para Mateus, que agora não possui olhos, mas sim um par de círculos brancos, xamânicos e cintilantes, como um sacerdote místico, capazes de ver a alma (dos outros ou a dele mesmo) ou transformar as demais pessoas. Nessa dimensão de magos zoroástricos e feiticeiras ninfas, seria ela a suma sacerdotisa?

As cores das peles mudam. As formas, idem — para melhor. Menos Mateus. Mateus permanece disforme, alomórfico, kafkiano. Já Sabrina é mitológica, entidade fantástica de máscara veneziana, asas e cores sobrenaturais. É leve, suntuosa, magnífica. Senhora do tempo, da física e dos astros. É carga elétrica em movimento, de sinal oposto a Jéssica. Por esse motivo, se atraem e dançam. E pela dança se beijam.

Onze horas de festa; três, na percepção de Jéssica. Agora, todos têm a mesma tez desbotada, humana. As cores desapareceram. Utopia desfeita. Há o amarelo do sol, ou o vermelho das pálpebras fechadas contra ele. Lu está abraçada a Otávio, Jéssica a Mateus. Sabrina se foi. Quer dizer: voou para longe dessa desintoxicada realidade.

Gustavo Scussel