A lápide fora comprada há um mês. Segundo o médico, estava bem de saúde. Não possuía vícios, doenças hereditárias, nem rinite alérgica. Aos setenta e dois anos, era de ferro. Mas a morte, o desejo pelo fim, já o obcecava. Casado nunca foi. Também, nunca sonhou em ser pai, avô, chefe de família. Dedicou-se à música dois terços da própria existência. Compôs, diariamente, canções que significaram momentos inesquecíveis para muitos, letras que alimentaram diversos corações apaixonados e descreveram aquilo que os amantes jamais conseguiram expressar.
A inspiração acabou repentinamente. Seu Agenor, como era chamado na vizinhança, já não escrevia mais. Perdia, pouco a pouco, a vontade de viver. Desejava, de fato, o fim, mas o próprio fim não o desejava. Em sua casa, na poltrona da sala, ao lado do móvel que sempre aparava livros de Rubem Braga, Lima Barreto, Érico Veríssimo, Graciliano Ramos e, principalmente, Álvares de Azevedo, suspeitava, meditativamente, de algum tipo de desentendimento com a Morte. Sim, tratava-a como pessoa, por vezes com respeito, empregando “senhora” sempre que possível. Afinal, não desejava irritá-la; se a Morte estivesse enfurecida, seria capaz de orquestrar fim agonizante, humilhante, desumano. Por isso o respeito era imprescindível.
A laje tumular ficara a contento: humilde, mas bela; espécie de cartão de visitas simples, mas convincente, direto ao ponto. Gostou tanto que, em virtude disso, dedicou-se a visitar, em dias alternados, o cemitério e a futura lápide, empregando, vez ou outra, alguma melhoria ao túmulo.
A primeira providência que tomou, foi plantar uma árvore ao lado. Teve lucidez o suficiente para banalizar e ironizar o próprio desejo. Morto, enterrado, enfim em paz, não haveria de se preocupar com o sol. Isso, claro, era inquietação em vida, desejo irrisório de controlar tudo, até a morte.
Agenor surpreendeu-se, certo dia, ao encontrar, diante da lápide inabitada, um vaso pequeno e lindo. Do caule engrossado na base, despontavam rosas exuberantes, folhas em espiral agrupadas nas pontas dos ramos. Não conhecia a flor, a planta, o caule, nada; ainda assim, achou o conjunto escultural, regalo de alguém certamente magnânimo em alma. Assim, tomado por encanto, surrupiou o receptáculo.
Em casa, a princípio, depreciou a própria atitude. Discutiu, consigo mesmo, sobre seus direitos. Se morto estivesse, sentido faria em deixá-lo em sua lápide. Mas vivo? Vivo, por direito, era seu, oras!
Apaixonado pela rosa, abandonou a recorrente visita ao cemitério. Empenhou-se, cotidianamente, a cuidar da planta, regá-la, apreciá-la, colocá-la ao sol e tirá-la. Dedicou, inclusive, algumas notas do violão a ela. Rabiscou, no auge do amor, uma letra inédita, a melhor da carreira, em sua opinião.
Não encontrou, nos versos ou refrãos, título para a canção. Buscou auxílio em um livro sobre plantas. Dispondo de tempo, folheou as páginas uma a uma, até, finalmente, encontrar: rosa do deserto. De súbito, uma lágrima escorreu pela face. Sentiu-se, pela primeira vez, sozinho. Dormiu reduzido à solidão, entregando-se, finalmente, aos braços da Senhora que o acolheu.
Gustavo Scussel