Existia razão para que não se envolvesse daquela forma, mas deitada ali, preferiu ignorá-la. No meio da noite estrangeira, na pousada cuidadosamente escolhida por ela, onde a brisa do mar que outrora devastara a costa daquele país exótico era com frequência mais amena e agradável que o ar artificialmente refrigerado do quarto, Anne permitiu-se ser influenciada pelo carinho de Mauro e, dispondo-se a conduzir o simulacro que o momento exigia, se lançou de maneira completa, pela primeira vez, ao desfecho de algo que ela própria dera início.
Foi ela quem primeiro buscou o beijo, ela quem primeiro o acariciou por baixo da camiseta; ela quem primeiro, com um toque, incentivou o desnudamento, deu a permissão, abriu as pernas, guiou o encaixe… E foi Mauro quem se surpreendeu com o beijo, quem se viu arrepiado sentindo os dedos dela em suas costas, quem agradeceu o toque da mão que desceu parte de seu pijama, quem duvidou da permissão, quem temeu posicionar-se sobre ela e quem se segurou para não se perder ao senti-la.
Anne achou todas aquelas sensações curiosas, não apenas a do desvirginamento, que acabou se mostrando o oposto dos relatos das amigas, mas também a da conveniência. Na verdade, não sabia ainda explicar esta, tampouco tinha certeza. Talvez nem fosse conveniência. De qualquer modo, identificar ou explicar uma sensação específica estava longe de qualquer prioridade, pois estava mergulhada em si mesma, relaxada e feliz, e desatenta às carícias e aos beijos que recebia no bico do seio ainda enrijecido.
Na mesma noite, por outras tantas vezes, Anne voltou a experimentar parte dessas sensações, e em nenhuma outra ela tivera que dar o primeiro passo ou encontrar disposição para dirigir a si mesma em uma encenação. E o esforço preservado resgatou nela, de alguma forma, o sentimento anterior que ainda carecia de uma explicação ou de uma certeza, mas que dava sinais de ser “conveniência”.
Com a brisa fresca das monções do nordeste no céu azul, Anne e Mauro acabaram dividindo a ducha do chuveiro, e Anne adorou ter o corpo ensaboado, massageado e enxaguado por outras mãos. Outra vez, imersa em si mesma, não parecia estar atenta aos beijos na nuca, nos ombros, nas costas…
Deixaram o quarto exibindo rostos em lua de mel. Esbarrando um no outro com leveza, as peles se atraindo, deram passos desarranjados até a área aberta onde encontrava-se o buffet de café da manhã e onde Anne se serviu com os olhos — isso porque, onde quer que olhasse e quando quer que sentisse vontade de experimentar alguma comida, aquele mesmo alimento aparecia em seu prato; era Mauro, claro, quem a servia, atento ao olhar dela, aos mínimos movimentos do lábio e da garganta.
A manhã e a tarde correram com perfeição. No pôr do sol, voltaram para a região da pousada onde havia, também, uma praia pouco conhecida e pouco frequentada pelos turistas, mas famosa entre as pessoas locais pela beleza. Sentados na areia, ombro a ombro, conversaram enquanto observavam as areias oscilantes na beira do mar. Anne quis entrar. Levantou-se e tentou erguer Mauro, puxando-o pela mão. “Hoje não”, disse, ainda sentado, e sorriu educado. Ela foi sozinha, e uma brevíssima solidão a fez voltar. De novo na areia, quis saber quando poderiam entrar juntos no mar. Mauro respondeu, calmo e sem receios, que do mar tinha medo, e compartilhou os detalhes de um pesadelo comum em muitas de suas noites de sono: uma vastidão de água que, iluminada apenas pelo reflexo do sol na lua, o engolia e o afogava.
Anne se interessou: sabia nadar? Tinha medo de água? Do mar? Com ela seria capaz de entrar? Obteve apenas duas respostas. Depois, jantaram em um restaurantezinho próximo e voltaram para a pousada da mesma maneira que saíram do quarto pela manhã. Mauro preparou a banheira para Anne, pensando apenas nela, mas aceitou, sem qualquer sinal de falsa oposição, acompanhá-la.
Ali, também, ela gozou daquele sentimento incerto: de costas para ele, escorada em seu peito, teve os cabelos massageados com xampu até formarem um molde firme de espuma; e os ombros, os seios, a barriga, as coxas e as dobras entre as pernas acariciados pelo nylon macio da esponja; e o cabelo enxaguado como que por um cabeleireiro profissional, enquanto sentia o fluxo do chuveirinho acompanhar rigorosamente os dedos dele por entre cada mexa, dedos que, vez ou outra, tocavam-lhe a testa para impedir que uma gota escorresse até os seus olhos. E ali, também, vencida a inércia e a moleza, o mesmo sentimento a fez gozar: de frente para ele, beijou e foi beijada até encaixar-se lenta e prazerosamente nele; abraçou e foi abraçada; estimulou e foi estimulada pelo tênue inchar e desinchar que, por dentro, a mantinha no mesmo lugar e a fazia transitar entre o sono e o deleite, até, por fim, encerrar-se neste, fazendo-a regressar a si com violência, e espremer os quadris de Mauro com as próprias pernas e deixar a saliva escorrer direto para a boca dele.
Anne teve, de repente, a certeza: sim, conveniência! Tudo aquilo era conveniente. Tinha tudo: uma viagem para fora do país, refeições deliciosas, passeios lindos e uma companhia que a agradava dentro e fora do quarto. Tinha tudo isso sem dar quase nada. “Quanta conveniência!”, pensou e sorriu para si mesma, ao mesmo tempo em que seu sorriso cruzava com o sorriso inconfundivelmente satisfeito de Mauro.
Anne dormiu como jamais dormira antes, e não foi perturbada nem mesmo pelo pesadelo de Mauro que, naquela noite, ocupou o palco dos sonhos dela, mostrando-o ser engolido pelo mar como ele próprio provavelmente fora engolido várias vezes em seus pesadelos.
No dia seguinte repetiram a ducha a dois, o café da manhã e os passeios. Dessa vez, Anne ganhou presentes: vestidos, pulseiras e lembrancinhas. “Quanta conveniência!”, repetiu para si, feliz.
No pôr do sol, sentaram-se quase no mesmo lugar da praia próxima à pousada, e a conversa se repetiu. Mas, dessa vez, Mauro respondeu um pouco áspero, e a resposta seca lhe provocou um silencioso espanto, e que fez brotar nela, no mesmo instante, um sentimento estranho.
Anne não insistiu. Permaneceu em silêncio, e em silêncio se lembrou, por acaso, do sonho que tivera, mas não disse nada. Em outra ocasião, teria adorado a oportunidade para fazer graça com o medo dele, mas, dessa vez, o sentimento estranho a segurara, não por receio de desapontá-lo e deixá-lo triste, mas sim por receio de desapontá-lo a ponto de irritá-lo e perder qualquer espécie de privilégio que vinha lhe proporcionando todo tipo de conveniência.
Voltaram para a pousada depois de Anne convencer Mauro a pular o jantar. No quarto, tão logo ele fechou a porta, Anne se despiu e, valendo-se de toda autoridade que tinha sobre si mesma, disse: “Faça comigo o que quiser.” E ele fez. Mas, para surpresa de Anne, tudo que ele fez — cada toque, cada gesto, cada beijo e movimento — foi ao encontro das vontades nascituras e até então não reveladas que nela se encontravam, fazendo-a despertar, envolver, ferver. E ferveu, como ferveu! No peito, o coração bateu acelerado; na pele, o suor salgado, os beijos molhados e a brisa natural que entrava pela janela se misturaram; e entre as pernas, engoliu e expeliu fogo.
Caíram no sono sem banho e sobre o lençol encharcado, nus e esparramados, apenas as pernas se cruzando. Anne despertou pouco depois da meia-noite, tateou o corpo de Mauro, provocou-lhe apenas um pouco e o montou como havia montado na banheira. Gozou e caiu outra vez no sono. Mauro, por sua vez, continuou acordado.
Pelo breu, constatou que o aparelho de ar-condicionado estava desligado. O pensamento escureceu: estava cansado, esgotado, quente e suado, mas eram esse cansaço, esgotamento, calor e suor que o impediam de dormir. Uma súbita cólera insone se instalou e criou voz. Concordou, de repente, que havia se esforçado muito para realizar um sonho que nem mesmo parecia ter sido seu. E agora… agora ainda restava uma semana de viagem. Ah, quanta energia despendida, quanto dinheiro gasto! E quanta fome! Pular o jantar, afinal, se mostrara uma péssima ideia. Pulou irritado da cama e caminhou sozinho para o chuveiro. Quando voltou, custou a pegar no sono, e quando dormiu, foi atormentado pelo costumeiro pesadelo.
O sol nasceu e Anne desconfiou que aquilo que vinha sentindo não era conveniência, mas sim outro sentimento; ou, se era conveniência, esse sentimento havia se transformado em algo mais. Fosse como fosse, sentia que seria bom ter isso todos os dias, como um alimento básico, diário. Se fosse amor, talvez fosse a hora de se arriscar. Não fazia sentido ter medo. Além disso, pensando em defesa da própria decisão de se arriscar a fim de tê-lo e assumi-lo como naquele momento desejava ter e assumir, as famílias que se resolvessem; os problemas deles, não eram os seus.
Mesmo incerta quanto a esse sentimento (era ou não era amor?), despertou inclinada a tê-lo como certo, e por isso acordou Mauro aos beijos, arrastou-o para o chuveiro, lavou-o, tratou-lhe como fora tratada, retribuiu quase todas as carícias que havia recebido; e no café da manhã e no almoço o serviu em seu prato, e durante o passeio, à tarde, fez outros homens, todos invisíveis a ela, invejarem-no; e na praia o abraçou, e na pousada o exauriu. E antes mesmo de amanhecer, quis tudo de novo, com tanta urgência que começou pelo fim do hábito que naturalmente se estabelecera na viagem: esfregou-se nua nele, colheu dele o que queria e o que precisava, beijou-lhe na cama e no chuveiro sem sentir pudor do próprio hálito, e foram para a praia com os primeiros raios de sol.
Seguiram caminhando, Anne puxando Mauro pela mão. Ele, carregado de ódio e escondendo uma impaciência fora do comum, se deixou ser levado. Desconfiava que ela seguiria mar adentro, e ele decidiu que iria até o fim, que entraria, que mergulharia se fosse preciso. Isso mesmo: decidiu que mergulharia, sim, nem que fosse para se esquecer do mundo por um segundo ou, quem sabe, ser engolido pelas águas e desaparecer desse pesadelo real em que todas suas energias e dinheiro eram consumidos.
Seu rosto era uma máscara, mas o de Anne, não. No rosto dela, os lábios esboçavam uma curva de profundo afeto, de amor, de alegria.
Molharam os calcanhares em um ponto onde o mar não parecia mar, avançaram rodeados pela areia dançante em águas claríssimas, subiram em sincronia as primeiras marolas e desceram com a água cada vez mais alta em seus corpos, ela feliz, trêmula de excitação e de frio, ele nervoso, rígido de raiva e de medo. Na verdade, Mauro entendeu depressa o que estava acontecendo.
Ele agarrou a mão de Anne com força; ela também, mas por puro reflexo, alheia ao rosto dele, e a soltou em seguida. Ele gritou de imediato, pedindo-lhe sua mão de volta. Anne sorriu lembrando-se de que ele sabia nadar, inclinou o corpo um pouco para trás e bateu aceleradamente os pés, e em um curto instante se afastou tanto dele que só poderia ter sido puxada pelo mar.
Tomada pelo pânico, Anne inclinou o corpo para frente e começou a dar braçadas rápidas e inúteis, incapazes de tirá-la do lugar. Não via Mauro, não ouvia nada, sentia apenas seu corpo preso, como se estivesse agarrado a algo e sendo arrastado para outro lugar.
Mauro tentava aos gritos e com todas as forças, quebrar esse estado de pânico e trazê-la de volta a um mínimo de calma, ou, pelo menos, agarrá-la com firmeza o suficiente para arrastá-la rumo ao ponto onde as ondas os ajudariam a voltar para a praia, mas não conseguia nem um, nem outro.
Anne, então, com obstinada convicção, inspirou o máximo de ar que pôde e mergulhou. Sob a água sentiu que o corpo fluía em direção à areia. Mas o pouco ar logo se esgotou, e quando despontou a cabeça na superfície, descobriu-se ainda mais longe da margem. Tentou buscar Mauro com o olhar, mas uma onda lhe cobriu a cabeça. Tentou uma segunda vez, e foi novamente encoberta pela água. A força das pernas diminuía, o corpo descia e custava a manter o queixo para fora d’água. Foi por acidente, inclusive, que viu Mauro nadando em sua direção. Desejou, com toda a sua alma, que ele a alcançasse e a tirasse dali. Se tivesse mais força e mais ar, teria ficado feliz em vê-lo, como se essa visão lhe representasse e lhe desse a certeza de que estava bem, e não em apuros, como ela; mas estava fraca, sufocada, e por isso ocupada pela esperança manifestadamente egoísta de sobreviver.
Algumas pessoas locais que haviam entrado no mar tão logo ouviram os gritos alcançaram Mauro. Três se aproximaram bem. Comunicaram-se em péssimo inglês; dois seguiram mar adentro, Mauro e o outro nadaram juntos e sem muita dificuldade para o lado, e depois para a praia. Nesse curto intervalo, não viu mais a cabeça de Anne.
Enquanto era atendido por uma equipe de socorristas, deu-se conta das dificuldades que logo se desenrolariam pelo restante da viagem: visita ao consulado brasileiro, comunicações extras com as autoridades locais, registro de óbito e os preparativos para um possível traslado internacional de corpo. Contudo, mesmo prestes a ser ocupado completamente pela realidade estressante, um pensamento sucedeu de se manifestar primeiro: “Quanta conveniência!”
Gustavo Scussel