Esvaziava a última gaveta do criado-mudo quando encontrou o envelope ainda lacrado. Isabella se sentou na cama e o abriu:
“Hoje eu te acordei. Havia quanto tempo que não fazia isso? Três meses? Quatro? Sim, quatro meses. A última vez foi na véspera do meu aniversário, lembra? Eu me lembro. Foi o último beijo que trocamos. Você estava sentada ao meu lado no sofá, enquanto me deixava brincar com o seu cabelo, tocar sua orelha, sua bochecha, e refazer o caminho de sua sobrancelha com o polegar.
Quatro meses. Passou voando. Teve a mesma impressão? Acredito que não. Provavelmente não teve impressão alguma. De qualquer maneira, hoje te acordei. Como sempre, você demorou a despertar. Tirei a mecha que lhe cobria o rosto e a coloquei detrás de sua orelha. Fiz aquele carinho — o mesmo carinho, o de sempre. Você não sentiu nada; pelo menos, acho que não. Depois me aproximei. Chamei pelo seu nome baixinho. Repeti. Aproximei a cada tentativa. Meus lábios quase tocaram sua orelha. Então você acordou assustada — o mesmo susto, o de sempre. Virou o rosto depressa, cobriu-se com o travesseiro, e eu o tirei ainda mais rápido. Seus olhos ainda estavam fechados, mas o sorriso em seus lábios era evidente.
Por que ficamos tanto tempo sem nos falarmos? Eu me preocupei de verdade da última vez. Você chorou aquela madrugada inteira. Disso, sim, você se lembrou. Verdade: as dores você nunca esquece. Nunca.
Não acho que superou aquilo. “Cínica”, foi como te chamei, e você tapou a minha boca com carinho. Eu jamais a chamaria de cínica pra valer!
Trocamos um sorriso; você me contou sobre a festa, de como voltara tarde, de madrugada, quase amanhecendo. Ainda desejava dormir, mas não queria que eu fosse embora. Eu também não queria; em vez disso, confesso que preferia vê-la dormindo.
Sentou-se na cama e anunciou as novidades. Não, não era novidade que você havia bebido — isso eu havia sentido em seu hálito. Pelo menos não havia fumado. Ainda bem! Nunca gostei do cheiro de cigarro em você.
Não precisava dizer que não havia terminado o desenho em sua parede, pois eu estava vendo. Claro, claro… Vivia com preguiça. Na verdade, não acredito que o terminará um dia. Uma pena, pois o desenho estava ficando bom, ainda que jamais tenha concordado comigo.
Quando rolou na cama de barriga para cima, sentei e me ajeitei para o seu lado como se fosse uma almofada. Não senti o ossinho do seu quadril. Explicou para mim que havia engordado. Mentira! Você nunca engordou. E também nunca deixou de ser exagerada!
Por que sempre fazia isso? Por que sempre sumia? Por quê? Eu sempre soube que você era assim, mas, poxa… eu me preocupei de verdade da última vez. Eu não estava por perto, mas desejava estar. Sei do seu sofrimento. Sei também como é sempre passageiro. Você disse que daquela vez era diferente. Diferente? Sempre disse isso, mas nunca foi diferente. Nunca mudou.
Então você se virou de costas. Vi que suas pintas continuavam crescendo, e eu sabia que não havia ido ao dermatologista. Claro, claro… Vivia com preguiça. Mas prometeu que iria, pois não queria ficar velha com pintas enormes nas costas. Afinal, disso você tinha medo.
Como pode se enganar? Na verdade, você tem medo de amar.
Fui exagerado? Sincero, apenas. Achou que eu fosse discutir? Não havia razão para isso: eu estava de saída desde o instante em que te acordei.
“Quando eu volto?”, você perguntou.
Não voltarei. Não para você.”
A carta, inédita e perdida na gaveta depois de tantos anos, ainda trazia a maior verdade de sua vida: as dores ela nunca esquecia. Por isso, as lágrimas eram as mesmas. O choro, nem mais forte, nem mais fraco — apenas o mesmo da noite anterior, da semana anterior, dos anos anteriores.
Gustavo Scussel